Primeiro de maio - Mário de Andrade
No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis
horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele
bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de
celebrar.
Os
outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse
trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava
com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E
agora tinha o grande dia pela frente.
Dia dele... Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de
existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e
frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas
foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi
se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em
quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele,
desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo
esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido.
Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.
Ia devagar
porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele
desse uns socos formidáveis nas ruças dos polícias. Não teria raiva especial
dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos
fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o
proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se
esperava grandes "motins" do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no
Chile, em Madri.
O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não
tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele... Uma
piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia
parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater,
vencer... Comunismo? ... Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem
direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa,
faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil
estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35
desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera,
ah, um soco bem nas ruças dum polícia... A navalha apressou o passo outra vez.
Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de
cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do
apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra
vez, safada! Riu.
Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado
na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica
amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos,
bandeira brasileira, tempos de grupo escolar... E o 35 comoveu num hausto
forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando
depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho
não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.
Uma
indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio,
ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na
cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo,
era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos
companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não
gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou
nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca
gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo
de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito
polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de
café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria.
O 35 teve raiva dos polícias outra vez.
E como não
encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar
num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de
porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por
enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era
um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas
brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo
para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que
trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha
banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia
mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava
celebrando. E continuou no passo em férias.
Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando.
Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento,
talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que
estava sentindo já... Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por
afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, "Vocês vão ver!...” Mas
um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros,
era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar,
envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em
frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro
podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear
banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia
muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível,
assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que
estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo
muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que
eram também os "operários da nação", é isso mesmo. O 35 se orgulhou
todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava
grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos
bons... Depois vinham as notícias. Se esperavam "grandes motins" em
Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar,
desejando "motins" (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força
física, ah, as ruças de algum... polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.
Pois estava
escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e
passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a
polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do
jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante
queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadeza
dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela
imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no
pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária,
com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do
Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não
era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra
eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta!
Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria,
rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do
Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a
indústria é a gente, "operários da nação" pegavam fogo na igreja de
São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo
em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino...), é melhor a gente
não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo,
vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda,
pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o
tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria
sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação
aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque
não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que
democrática, vão "eles"!... Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos
menos... O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de
sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer...
Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão
moço. A moça do apartamento...
Salvou-se
lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e
o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival,
desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o
relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!
Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na
beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no
raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra
não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia
de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele
percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio
das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central
sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas
devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não
falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e
exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento...),
mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho "Vós,
burgueses", e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal
do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal,
um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na
Estação.
Chegou
tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada,
não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia
alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada,
decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia
Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado
aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.
Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram.
Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando
a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento”
dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de
remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz... Mas como perceber
tudo isso se ele precisava não perceber!... O 35 percebeu que era fome.
Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso
para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo
deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam
trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas,
mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas
só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com
ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!...
Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era
uma idéia ir lá, com que pretexto?... Devia ter ido em Santos, no piquenique da
Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio... Recusara, recusara
repetindo o "não" de repente com raiva, muito interrogativo, se
achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse
piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não
ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste,
desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável
que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se
confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não
rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia
indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos
companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar... E quando a mãe lhe
pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se
queixar "Estou sem fome, mãe". Mas a voz lhe morreu na garganta.
Não eram bem
treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do
Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado
que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado
de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já
se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários
endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas
proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com
melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.
O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da
Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava
anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo
semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de "motim". O
486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio
das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram
operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram
distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.
Foi uma nova
sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias,
centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro
parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo
a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal,
são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá
dentro, eu!... O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres
horrendos de "proletários" lá dentro, descrevia tudo com a
visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os
polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.
Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram
operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta:
"Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!" com voz de
mandando assim na gente... O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os
outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens
bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos
obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista
dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do
parque, mais longe.
Esses
movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que
ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade,
era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que
estavam ali também pra... pra celebrar? pra... O 35 não sabia mais pra quê. Mas
o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela
porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição
violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa
fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos
cavalarias, pra brigar... E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas,
dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou
que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de
entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não
fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de
socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha
piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas
era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas
desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:
— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me'rmão! no parque
ninguém não pára não!
Cabeças-chatas...
E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto,
com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal
no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se
despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio
de viver.
O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas,
decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três
minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35
carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais
de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.
Acabara por
completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante,
nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o
primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de
novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia
pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem
cor por dentro...
Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não
almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A
multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha,
nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos,
onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas
então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o
pretexto magnânimo de dar feriado aos seus "proletários" também.
E o 35
inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade
mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os
companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam
abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu
mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o
excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava
gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com
prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio
inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar
como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo
um muxoxo de desdém pra tudo.
Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo
carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com
dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo,
tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que
chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria,
acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas
velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando:
"Assim não serve não! As malas não vão não!" Aí o chofer garantiu
enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas "não largavam
não", só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22,
gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com
muita aceitação.
O 22 era
velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas,
preparou a correia, mas coçou a cabeça.
— Deixe que te ajudo, chegou o 35.
E foi logo
escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço
satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha
rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu
socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.
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