quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Palavra do Grande Inquisidor, por Rubem Alves

 

O Grande Inquisidor é um poema idealizado pelo personagem Ivan Karamázov e desenvolvido em forma de prosa no relato a seu irmão Aliócha, no romance de Dostoiévski Os Irmãos Karamazov (1879-1880). Trata-se de um monólogo, situado na cidade de Sevilha à época da Inquisição Espanhola, no qual o Grande Inquisidor, um velho Cardeal, depara-se com Jesus Cristo, aparecido no período, e ordena a sua prisão mesmo ciente de que se trata do Messias, questionando e condenando sua volta à Terra e à morte na fogueira.


De tudo o que Dostoiévski escreveu em Os Irmãos Karamázov o que mais me impressionou foi o incidente do Grande Inquisidor. É assim: Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o reconheciam e sentiam o seu poder, mas ninguém se atrevia a pronunciar seu nome. Não era necessário. De longe, o Grande Inquisidor o observa no meio da multidão e ordena que ele seja preso e trazido à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso, ele profere a sua acusação.

Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. Em lugar de pacificar a consciência humana, de uma vez por todas, mediante sólidos princípios, Tu lhe ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas: a liberdade. Agiste, pois, como se não amasses os homens... Em vez de Te apoderares da liberdade humana, Tu a multiplicaste, e assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda a eternidade...

O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade, mas, de posse dela, são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade dá medo. Os homens são pássaros que amam o voo, mas têm medo dos abismos. Por isso abandonam o voo e se trancam em gaiolas. 


Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que eles voariam se as portas estivessem abertas. A verdade é o oposto. Não há carcereiros. Os homens preferem as gaiolas aos voos. São eles mesmos que constroem as gaiolas em que se aprisionam...

Deus dá a nostalgia pelo voo. As religiões constroem gaiolas.

Os hereges são aqueles que odeiam as gaiolas e abrem as suas portas para que o Pássaro Encantado voe livre. Esse pecado, abrir as portas das gaiolas para que o Pássaro voe livre, não tem perdão. O seu destino é a fogueira. Palavra do Grande Inquisidor.

Rubem Alves

Correio Popular

22/05/2005


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