domingo, 26 de maio de 2024

O Construtor de Memórias


      Reporto-me a alguém que soube fazer do seu cotidiano um permanente canteiro de obras, em que o concreto e o simbólico se misturam numa oposição à abstração manifesta em obras de alvenaria; cálculos e (as)simetria permeados de subjetividades em edificações feitas com argamassa e afeto.

    Esse cotidiano caracterizado como um permanente canteiro de obras é embalado ora pelo contundente silêncio de um trabalho solitário ora pelo ritmo de um assobio de sinfonia autoral. Uma trilha sonora ecoa em sintonia com os ruídos peculiares à mão de obra: o tinir do martelo, a água que murmureja, o suor que goteja, a areia que se ergue em fusão com o vento e deixa seus rastros na pele, no chão e se une a outros elementos protagonizando manhãs e tardes cheias de sinestesia. Tudo é conexão.
  O cotidiano é um permanente canteiro de obras porque a lida se faz constante, minuciosa, necessária. E nesse intermédio, o construtor não se descuida do vai e vem à sua volta. Por vezes, larga mão do labor, improvisa um apoio aos braços, relaxa uma perna, respira fundo e se permite uma prosa fortuita com um ou outro "amigo de calçada" acerca do inusitado resultado de uma partida de futebol, dos (des)arranjos da política, das condições do tempo. Prosa essa sempre finalizada com dizeres próprios de quem se diz já ter nascido vascaíno. Vascaíno raiz.
     A mais importante obra edificada nesse permanente canteiro de obras consistiu precisamente em estabelecer vínculos. O tempo foi o grande aliado justamente porque a construção de laços exige uma progressiva sedimentação em cuidados, perseverança e disposição, de maneira a alcançar o sentido para o qual foram concebidos. O construtor disso intuía na sua potente simplicidade operária.
     E, por fim, foi nesse permanente canteiro de obras que, na manhã do dia 26 de maio de 2023, o construtor de memórias pôs fim às tarefas e, nas horas seguintes, nele, recebeu o adeus dos seus "amigos de calçada", numa significativa revelação de que soubera realmente construir laços por meio de prosas fortuitas e breves cumprimentos ao longo das horas, dos dias, dos meses e de anos...
   Agora, no interior do já não permanente canteiro de obras, as memórias do construtor se configuram materializadas, afetivamente, em benfeitorias indispensáveis ao andamento do cotidiano que denuncia, sutil e continuadamente, sua ausência. E o valor maior dessas memórias, para nossa família, é sabê-las produzidas por mãos que primavam por deixar suas impressões, suas marcas de autoria, o que revela toda a singularidade de cada toque, de cada traço. São memórias que cabem na calçada, no canteiro e, sobretudo, no coração de quem soube olhar de perto e devagar nos olhos do construtor...

#Vastí

#Demóstenes, Sonaly/Sophia, Benjamin e Kalel

#Demétrius, Elisângela/Rebecca

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário