A vida não é a que
a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.
(Gabriel García
Márques)
Há situações em
que a memória se apresenta por meio de perguntas que fazemos ou que fazem para
nós; em outras, a memória é despertada por uma imagem, um cheiro, um som.
De onde vem
nossa necessidade de lembrar? Ou: por que a lembrança se impõe até mesmo quando
não temos intenção de recordar? A aceitação dessa ideia nos leva a encarar a
poética sugestão de Walter Benjamin (2004):
“A memória não
é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde
se deu a vivência, assim como o solo é o meio sutil no qual as antigas cidades estão
soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado
soterrado deve agir como o homem que escava.”
Aproximar-se
dos ausentes, compreender o que se passou, conhecer outros modos de viver,
outros jeitos de falar, outras formas de se comportar representam
possibilidades de entrelaçar novas vidas com as heranças deixadas pelas
gerações anteriores.
As histórias
passadas por meio de palavras, gestos, sentimentos, podem unir moradores de um
mesmo lugar e fazer que cada um sinta-se parte de uma mesma comunidade. Isso
porque a história de cada indivíduo traz em si a memória do grupo social ao
qual pertence. Esse encontro, como afirma Ecléa Bosi (2005), é uma experiência humanizadora.
As
histórias têm memórias
Os registros
escritos são uma possibilidade de perpetuar nossas memórias. Em seu livro Memórias
inventadas: a terceira infância, Manoel de Barros nos mostra como o
processo de escavação proposto por Benjamin pode ser feito por meio da literatura:
Três
personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas. Uma,
a criança; dois, os passarinhos; três, os andarilhos. A criança me deu a
semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra.
E os andarilhos, a pré-ciência da natureza de Deus. Quero falar primeiro dos
andarilhos, do uso em primeiro lugar que eles faziam da ignorância. Sempre eles
sabiam tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhes
dava uma linguagem de chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar
sempre de surpresa. Eles não afundam estradas, mas inventavam caminhos. Essa a
pré-ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. Bem
que eu pude prever que os que fogem da natureza um dia voltam para ela. Aprendi
com os passarinhos a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar ter motor
nas costas. E são livres para pousar em qualquer tempo nos lírios ou nas pedras
– sem se machucarem. E aprendi com eles ser disponível para sonhar. O outro
parceiro de sempre foi a criança que me escreve. Os pássaros, os andarilhos e a
criança em mim, são meus colaboradores destas memórias inventadas e doadores de
suas fontes.
Manoel
de Barros. Memórias
inventadas: a terceira infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008.
Texto disponível no Caderno do Professor Se bem me lembro... (material da
Olimpíada de Língua Portuguesa – Escrevendo
o Futuro).
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