Marcelino,
tenho medo de voltar ao seu país porque cresci relutante para ser adulto e sei
que me mantenho em tantas coisas apenas uma criança. Julgo que saio à rua ainda
com a alegria de encontrar alguém com quem, de algum modo, possa pressentir a
alegria que existia quando estávamos apenas a brincar.
Eu não sei estar
sozinho. Não aprecio a solidão, gosto das pessoas e não há como curar minha
natureza para gostar delas. Mas agora tenho medo do seu país que eu amo. Fiquei
toda a vida sonhando ser português e brasileiro, para pertencer a Machado de
Assis e Fernando Pessoa. Sonhei que meu orgulho teria papel passado, como quem
casa consciente, dedicado, de amor profundo, para toda a eternidade. Eu não
previ este medo. Fico desolado.
Estão proibindo as
pessoas de serem negras, Marcelino, proibiram de ser mulheres, Marcelino, agora
decidiram proibir de ser criança e eu sabia que haveria alguma coisa que ainda
me pegaria. Por isso, há muito que eu já brigava pelos negros e há muito que eu
já brigava pelas mulheres, eu já brigava pelos viados todos e pelas pessoas sem
explicação, tanta gente que só é, sem ter muito como entender ou fazer
entender, e quer apenas estar em paz.
Eu dei de barato tanta
coisa sobre a paz que talvez tenha esquecido de estudar corações, o verdadeiro
lugar da guerra. Sou muito despreparado. Passei pelo tempo buscando o deslumbre
e vi a melhor versão de cada instante, não vi que medravam no escuro as piores
intenções, os ódios que inviabilizam a humanidade. Eu, sinceramente, não vi,
Marcelino.
Caminhei nessas ruas
todas, tantos Estados, tantas capitais, e eu não dei conta desse ódio. Notei os
sorrisos, o samba, o jeito generoso das garotas e de alguns garotos olhando
para minha pouca beleza, eu notei os livros, tanta Literatura maravilhosa e a
obra do Tunga e Artur Bispo do Rosário bordando as vestes para alindar seu
encontro com Deus.
Marcelino, no Brasil eu
senti invariavelmente que Deus era possível. Sabe quando você se depara com
algo perfeito e isso só pode ser graça de uma inteligência superior? Eu vi uma
arara azul gigante, devia ter mais de um metro, e ela era mesmo um atributo
mágico do mundo, estava livre no cimo de uma árvore na floresta amazônica.
Naquele encontro, eu
consumei tudo, Guimarães Rosa e Elza Soares, Tarsila do Amaral e Fernanda
Montenegro mais Marília Pêra e Walter Salles, e Darcy Ribeiro mais Heitor
Villa-Lobos, e Cartola com Cildo Meireles e Adriana Varejão. Mais Gal Costa e
Mônica Salmaso e Paulo Freire lendo a mão de Chico César genial.
Eu entendi que Brasil
significa beleza e uma profunda esperança. Juro. Parecia uma experiência
mística, como se algum espírito me informasse e eu virasse um mensageiro
sagrado. Eu elogiei o Brasil em todas as ocasiões porque eu acreditei, e
acreditei que minha mensagem era sagrada. Você acha que um espírito me
enganaria? Viria sobre mim de propósito para me iludir?
Marcelino, eu não
consumei minha adultez, sou apenas um menino, fui sempre ao seu país para
encontrar mais amigos e brincar um pouco de ser feliz. Lembra de gostarmos
tanto de Manoel de Barros? Eu sei exatamente a razão de gostar tanto da poesia
de Manoel de Barros. Ele usa pássaro e amigos e seus versos foram os melhores
brinquedos. Minha história é rigorosamente igual. Não tinha muito mais. Pais,
irmãos, amigos, os pássaros voando, versos. O lugar de guardar tudo é o verso.
O único sentido de ter verso é amar gente e cuidar de pássaro livre.
Estão atirando sobre as
crianças e alguém me diz que apenas as negras, são apenas as crianças negras,
mas eu duvido que parem por aí. Nós, as crianças mais claras não estamos na
linha do tiro? Nem que seja por vergonha, vamos morrer também se não dissermos
nada, se não fizermos nada. E se as crianças negras viraram proibidas, que
legitimidade teremos nós?
Sabe, Gilberto Freyre
explicou tão certinho que os portugueses são os mestiços da Europa. Eu tenho
sangue árabe, africano e europeu. Sou uma porção de cada coisa e minha pena é
não lembrar, só minhas células sabem.
Não deixe que acabem
com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição
resplandecente.
Você sabe a razão para
rejeitarem os negros para as periferias? Eu não descobri. As casas do centro
não têm tamanho para negros? Eles são maiores? Aumentam quando dormem? Quando
sonham? Ficam derrubando paredes, perigando as fundações dos prédios? Eu acho
que não. Eu vi um moço entrando na livraria à minha frente, coube na porta
melhor do que eu. Você acha que tem alguém obrigando a que ele corra para a
periferia depois de pagar o seu livro? Eu não posso acreditar. Que pena que eu
não falei com ele, devia ter perguntado. Talvez me contasse de como fica
infinito sonhando, ao ponto de perturbar o silêncio, tremer o prédio, causar
fumo. Você já pensou se nossos sonhos também fizessem isso? Eu ia querer,
Marcelino. Eu ia querer que meus sonhos fossem tão grandes. Mas sonho só com a
paz. Estar sossegado com minha família e meus amigos. Notar os pássaros voando.
Marcelino, façamos uma
jura de não morrer durante o plano de nos matarem. Não somos senão ternuras
gigantes, guerreiros açucarados, eu entendi que nós precisamos de um pacto
poético para embravecer nossa cidadania. Você, que é meu amigo e escritor que
tanto admiro, não me falte nunca desse lado.
Cuide de Chico Buarque
e de Caetano Veloso, por favor, em qualquer cabeça sã do mundo eles representam
o Deus possível. Cuide de Maria Bethânia. De Sônia Braga. Diga a Davi Kopenawa
e a Ailton Krenak que a floresta vai sempre amá-los, diga que a arara me
garantiu. Marcelino, fico ouvindo Rodrigo Amarante e quase ainda acredito em
tudo outra vez (Rodrigo é perfeito. Poderia ser a própria arara). Quase perco o
medo.
Vista também sua roupa
de super-herói e sobreviva. Você tem de manter a maravilha do Brasil. Não deixe
que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser
uma lição resplandecente, e vamos ficar mais belos que os modelos nos filmes
gringos. Vamos, sim, Marcelino.
Haveremos de devolver o
futuro às crianças. E seremos sempre futuros também. Só quem desistiu passou a
ocupar seu canto no passado. Marcelino, reassumo meu compromisso com a
esperança. Vou escolher sempre minha vida como lugar de semente. No meu medo,
Marcelino, muita coragem vai germinar.
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