segunda-feira, 6 de junho de 2011

Manifesto filosófico ( IV )

1. O Curinga ronda intranquilo entre os elfos de açúcar como um espião num conto de fadas. Faz suas reflexões, mas não tem nenhuma autoridade a quem informar. Só o Curinga é que vê. Só o Curinga vê o que é.
2. Que pensam os elfos no momento de serem paridos e chegarem completos e desenvolvidos a um dia flamejante? Que dizem as estatísticas sobre isso? É o Curinga que pergunta. Ele mesmo tem um sobressalto cada vez que ocorre o pequeno milagre, descobre-se como que num jogo de magia produzido por ele mesmo. Dessa forma comemora a manhã da criação. Dessa maneira saúda a criação da manhã.
3. O Curinga acorda de sonhos desconexos para uma realidade de carne e osso. Apressa-se a colher os frutos da noite, antes que o dia os amadureça demais. É agora ou nunca. É agora, e nunca mais. O Curinga compreende que não pode sair duas vezes da mesma cama.
4. O Curinga é um boneco mecânico que se quebra em pedaços todas as noites. Quando acorda, recolhe braços e pernas, e os compõe de novo para que o boneco volte a ser como no dia anterior. Quantos braços havia? Quantas pernas? E, depois, uma cabeça com um par de olhos antes de poder se levantar.
5. O Curinga acorda numa almofada dentro de um disco rígido orgânico. Nota como tenta chegar à praia de um novo dia a partir da cálida corrente de miragens mal digeridas. Qual é a energia que acende os corações dos elfos? Quais são as turbinas que propulsam os fogos artificiais da consciência? Qual é a força atômica que une as células cerebrais da alma?
6. Nota como voa no vazio. Não pode continuar assim. Não terá merecido se aproximar mais um passo? O Curinga faz alguns movimentos obstinados diante do espelho do armário, tenta roubar do duplo da alma um piscar de olhos cheio de compreensão. Mas tudo é como antes. Aperta os dentes, belisca-se o milagre.
7. De repente está sentado na cadeira de montar numa fila de alfa a ômega condenada à morte. Não se lembra de ter montado a cavalo, mas nota como os potros da vida galopam debaixo dele e é levantado por forças míticas para uma repentina parada.
8. O Curinga é tão rico em passado que num instante embriagador se sente infinitamente robusto. Quantas gerações pode calcular desde a primeira divisão celular? Quantos partos pode incluir desde o primeiro mamífero? É o momento dos grandes números. Acaso já não havia iniciado essa reflexão matutina quando o primeiro peixe irrompeu na quietude da água? De repente o pequeno bufão se sente incuravelmente enjoado. Rico em passado, sim, ele é. Mas não tem futuro. Rico em história ele é. Mas não é nada depois.
9. O Curinga é um anjo em apuros. Por causa de um mal-entendido fatal, vestiu-se de carne e osso. Só queria compartilhar as condições dos primatas durante alguns segundos cósmicos, e teve o azar de puxar a escada celestial e descê-la com ele. Se ninguém o recolher já, o relógio biológico andará cada vez mais depressa, e ficará tarde demais para regressar ao reino dos céus.
10. A porta do conto está aberta de par em par. Está claro que alguém deveria informar sobre isso, mas não há nenhuma autoridade a quem comunicá-lo. O Curinga é arrastado inoxoravelmente para a fria corrente do que não existe fora. Enxuga uma lágrima, não, está chorando de verdade. É assim que o frágil bufão diz seu triste adeus. Sabe que não pode regatear. Sabe que o mundo nunca voltará.
11. O Curinga só está presente em parte no mundo dos elfos. Sabe que vai embora, e por isso acertou suas contas. Sabe que vai desaparecer do todo, e por isso já está meio desaparecido. Vem de tudo o que há e não vai para lugar nenhum. Quando chegar ao destino, não poderá nem sonhar em voltar. Irá para o país onde nem sequer se dorme.
12. Quanto mais o Curinga se aproxima da extinção eterna, maior é a clareza com que vê o animal que o cumprimenta no espelho ao enfrentar um novo dia. Não acha consolo no olhar aflito de um primata de luto. Vê um peixe enfeitiçado, um sapo metamorfoseado, uma lagartixa deforme. É o fim do mundo, pensa. Aqui acaba abruptamente a longa viagem da evolução.
13. Precisa-se de bilhões de anos para criar um ser humano. E ele só precisa de alguns segundos para morrer.

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