sábado, 11 de junho de 2011

O papel de Santo Tomás de Aquino

Umberto Eco aponta importantes aspectos do papel cultural de Tomás de Aquino, empenhado em conciliar o cristianismo com uma visão mais racional do mundo.

Platão e Agostinho tinham dito tudo o que era necessário para compreender os problemas da alma, mas quando se tratava de saber o que seja uma flor ou o nó nas tripas que os médicos de Salerno exploravam na barriga de um doente, e por que era saudável respirar ar fresco numa noite de primavera, as coisas se tornavam obscuras. Tanto que era melhor conhecer as flores nas iluminuras dos visionários, ignorar que existiam tripas, e considerar as noites de primavera uma perigosa tentação. Desse modo dividia-se a cultura europeia, quando se entendia o céu, não se entendia a terra. Se alguém ainda quisesse entender a terra deixando de lado o céu, a coisa ia mal.
A essa altura os homens da razão aprendem dos árabes que há um antigo mestre (um grego) que poderia fornecer uma chave para unificar esses membros esparsos da cultura: Aristóteles. Ele sabia falar de Deus, mas classificava os animais e as pedras; sabia lógica, preocupava-se com psicologia, falava de física...
Tomás não era nem herege nem revolucionário. Tem sido chamado de "concordista". Para ele tratava-se de afinar aquela que era a nova ciência com a ciência da revelação, e de mudar tudo para que nada mudasse.
Mas nesse plano ele aplica um extraordinário bom-senso e (mestre em sutilezas teológicas) uma grande aderência à realidade natural e ao equilíbrio terreno. Fique claro que Tomás não aristoteliza  o cristianismo, mas cristianiza Aristóteles. Fique claro que nunca pensou que com a razão se pudesse entender tudo, mas que tudo se compreende pela fé: só quis dizer que a fé não estava em desacordo com a razão, e que, portanto, era até possível dar-se ao luxo de raciocinar, saindo do universo da alucinação. E assim compreende-se por que na arquitetura de suas obras os capítulos principais falam apenas de Deus, dos anjos, da alma, da virtude, da vida eterna: mas no interior desses capítulos tudo encontra um lugar, mais que racional, razoável.
Antes dele, quando se estudava o texto de um autor antigo, o comentador ou o copista, quando encontravam algo que não concordava com a religião revelada, ou apagavam as frases "errôneas" ou as assinalavam para a margem. O que faz Tomás, por sua vez? Alinha as opiniões divergentes, esclarece o sentido de cada uma, questiona tudo, até o dado da revelação, enumera as objeções possíveis, tenta a mediação final. Tudo deve ser feito em público, como pública era justamente a disputatio na sua época: entra em função o tribunal da razão.
Que depois, lendo com atenção, se descubra que em cada caso o dado de fé acabava prevalecendo sobre qualquer outra coisa e guiava o deslindar da questão, ou seja, que Deus e a verdade revelada precediam e guiavam o movimento da razão laica.

2 comentários:

  1. Essa atitude de Tomás (até então inovadora) de não "passar a borracha" nos textos contrários à sua religião, e sim, evidenciá-los para fazer uma análise e discussão, foi, de fato, louvável e de grande relevância.

    Texto interessante. Cada visita ao Idiossincrasia é um novo aprendizado. :)

    Abraços,
    Júnior Gameleira.

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  2. Fico muito feliz com o seu comentário. É um prazer
    receber sua visita.

    Saudações filosóficas.
    VMarques

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