Dedicatórias e cartas encontradas em livros revelam histórias emocionantes que mexem com corações e mentes de donos de sebos do Rio de Janeiro.
Era uma noite de terça-feira insuspeita em Copacabana. No
fim daquele dia, 23 de outubro, um grupo de frequentadores do sebo Baratos da
Ribeiro faria exatamente o que faz há cinco anos: se espremeria entre as
prateleiras abarrotadas da livraria para mais um encontro do Clube da Leitura,
evento quinzenal em que leem trechos de livros e trocam impressões sobre contos
próprios. Quando chegou a sua vez na roda, o dono do sebo e fundador do clube,
Maurício Gouveia, tirou da gaveta um livro que guardava há dez anos escondido
no acervo: um exemplar em italiano de “Nove contos”, do escritor americano J.D.
Salinger.
Não tinha coragem de vendê-lo. Com as
bordas amareladas e as páginas carcomidas, aquele “Nove racconti” guardava uma
dedicatória em português na página de rosto que Maurício considerava mais
bonita do que todo o livro do autor do clássico “O apanhador no campo de
centeio”. Um homem comum — que poderia ser um médico, um vendedor de sapatos ou
um trapezista de circo — declarava seu amor a uma mulher, em Milão, em 26 de
dezembro de 1966. Maurício leu a dedicatória enorme, que começava com a frase
“De tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir” e se
encerrava com a oração “a vida é um contínuo chegar de esperanças”. Ao final,
subiu o tom para ler o nome do santo: Sylvio Massa de Campos.
Foi quando um dos frequentadores do
clube soltou um “opa!”. O jornalista George Patiño conhecia a família Massa, da
qual Sylvio era o patriarca. Ele não vendia sapatos, trabalhava em circo ou
morava em Milão: o matemático e escritor Sylvio Massa de Campos estava vivo, trabalhara
a vida toda na Petrobrás, tinha 74 anos e morava logo ali, no Leblon.
— Tem certeza? — perguntou Maurício.
— Trago ele aqui no próximo encontro —
prometeu George.
Feito. No dia 6 de novembro, um senhor
de cabelos brancos, sorriso fácil e porte altivo entrou no sebo acompanhado de
duas filhas e três netos. Emocionado, recebeu das mãos de Maurício o livro
perdido. Releu a dedicatória em voz alta, com pausas longas entre uma frase e
outra, o que só aumentava o suspense na livraria, entrecortado pelo ruído dos
netos inquietos. Depois de ser longamente aplaudido, contou aos novos colegas a
história por trás daquela mensagem.
Em 1966, ele fazia mestrado em
Matemática em Milão com uma bolsa do governo brasileiro. Lá, conheceu uma
italianinha de nome Febea, que tinha concluído os estudos em Literatura em
Londres, e acabava de retonar à Itália. Quando ela comentou que conhecia José
Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, e que adoraria aprender português para
ler Guimarães Rosa, Sylvio se apaixonou na hora: apesar de trabalhar com
algoritmos, era na literatura que descansava seus teoremas. Prestes a terminar
a pós-graduação, no entanto, logo voltaria ao Brasil. O amor foi construído à
distância.
— Nosso namoro durou um ano, 136
cartas, nove livros, dois telegramas e um telefonema — contou Sylvio, para
suspiro coletivo da plateia, e espanto das filhas, que não conheciam todos
aqueles números. — Naquele tempo, dar um telefonema era uma fortuna. Esta
dedicatória escrevi no dia do meu aniversário, já doido por ela. Eu nem sei
como perdi o livro, acho que foi numa mudança nos anos 80.
Um ano depois, Febea veio morar no
Brasil, e Sylvio montou um apartamento no Méier para ela. Tiveram duas filhas,
Isabella e Gabriella — que a essa altura se debulhavam em lágrimas na livraria
—, e viveram felizes para sempre. Até que um câncer levou Febea aos 41 anos de idade.
Sylvio nunca mais se casou.
— A arte de viver é a arte de acreditar
em milagres, disse o poeta italiano Cesare Pavese, e se hoje eu estou aqui é
porque ele está certo. Febea foi a pessoa que eu amei mais profundamente em
toda a minha vida. E ela está presente aqui, nessas cinco pessoas que fizemos,
nossas duas filhas e três netos. Esse é o milagre — declarou Sylvio, lembrando,
ao final, uma frase que ouvira do neto quando ele tinha 4 anos, e que levava
como mantra de vida: “Vovô, nada é grave.”
Na rotina dos livreiros de sebos,
dedicatórias anônimas aparecem com muita frequência. Mais até do que os
exemplares usados de “O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares, um campeão
nacional em rotatividade. Os livros já chegam com cantadas, desculpas,
felicitações, despedidas, malfazejos.
— O livro usado traz uma história que
muitas vezes é mais interessante do que aquela que ele conta. Aqui na Baratos nós tínhamos uma caixinha para
guardar os objetos encontrados dentro das páginas, como cheques, receitas
médicas, ingressos de cinema, flores, contas, fotos... Daria uma exposição —
comenta Maurício, que também guardou por algum tempo dois livros trocados entre
amigos, com dedicatórias irônicas em que tentavam dissuadir o outro das suas
convicções políticas (um era de direita; o outro, um anarquista convicto). Mas
acabou vendendo os exemplares. É da natureza da profissão: o livreiro não é um
colecionador, mas um comerciante.
— Todo sebo começa do mesmo jeito,
quando a pessoa precisa vender os próprios livros. Esta é a diferença de um
livreiro para um colecionador. Só o livreiro tem coragem de se desapegar. Ele
sabe que os livros que são de verdade voltam. Já encontrei livro que tinha sido
meu em acervo que fui comprar. Todo lote sempre está cercado de histórias, seja
uma morte, uma herança, uma mudança repentina de casa, de estilo de vida —
explica Marcelo Lachter, que começou a vender livros usados há 14 anos e hoje é
dono da Gracilianos do Ramo, um sebo virtual.
Mesmo defendendo o caráter comercial do
ofício, Marcelo tem um “Nove racconti” para chamar de seu: há seis anos, guarda
na gaveta um exemplar de “Recortes”, livro de ensaios de Antonio Candido
publicado em 1993, na esperança de devolvê-lo à família do antigo dono. A
história teve início em 2006, quando Marcelo recebeu o telefonema de uma
moradora da Barra da Tijuca, interessada em se desfazer da biblioteca do
marido, morto meses antes. Como era uma coleção especializada em Humanas, área
com muita procura, Marcelo arrematou o lote todo. Antes de fechar negócio, no
entanto, a viúva fez um pedido: caso ele encontrasse ali perdido um exemplar
com uma dedicatória do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan ao marido, que
devolvesse o título. Ambos tinham sido amigos de infância, perderam o contato e
retomaram pouco antes de Malan tornar-se o braço forte de Fernando Henrique
Cardoso.
Marcelo encontrou o livro e a
dedicatória: “Meu melhor, apesar de distante, amigo. Espero que você goste
deste ‘Recortes’, deste gênio literário e excepcional figura humana que é
Antonio Candido. Precisamos ler coisas como estas para que não esqueçamos nunca
de que há muito mais coisas na vida e no mundo que o nosso trabalho e nossas
pequenas procupações cotidianas. Feliz aniversário, um abraço deste amigo e
saudoso, Pedro Malan.” Mas perdeu a viúva de vista.
Outra história que aguarda um desfecho
parecido é a de Nice Motta, de 46 anos, livreira há dez. Assim como Marcelo,
Nice desistiu de uma loja física para se dedicar às vendas pela internet,
suporte que salvou da falência milhares de livreiros no país, através do
sucesso de sites como o Estante Virtual. Dona da Bola de Gude Livros, um acervo
que ocupa 98% do seu apartamento na Vila da Penha, Nice é ainda mais romântica
do que os colegas livreiros: ela embarga a voz cada vez que se depara com um fragmento
de história perdida nos livros que compra e vende. É mais metódica também. Os
objetos encontrados nos livros são reunidos numa caixa que ela guarda como um
pequeno museu alheio.
Em meio aos objetos, há fotos, desenhos
infantis, ingressos de espetáculos e até um passaporte para o Museu do
Holocausto, na Alemanha. Há uma carta bem alegre: “Esta porra foi
concebida pelo maior amigo putinho, mas com carinho. Uma beijunda
e um abraçaralho deste que te escreve, com muito amor, 27/10/86,
Edinho”); e uma muito triste (“À amiga Katia: cursei faculdade e não terminei,
namorei cinco anos e não me casei, escrevi um livro e não publiquei. Minha vida
segue em frente, sempre pela metade. Wagner, 73.”
Mas a pepita é um livro encontrado por
ela em 2007: “O poder do jovem”, best-seller de autoajuda do
parapsicólogo Lauro Trevisan. O exemplar tem duas dedicatórias. Uma escrita nas
costas da primeira página: “Bruno, eu vi este livro e achei que você ia gostar.
É coisa de mãe, fica tentando adivinhar o gosto do filho, eu queria te dar o
mundo, mas é melhor você descobrir com a ajuda deste livro o seu mundo inteiro.
Estou sempre aqui, filho, conte comigo, sua mãe, beijos, te amo, te amo e te
amo, Rio, 15/03/02.”
Seria só uma mensagem emocionada, não
houvesse a segunda, na página seguinte: “Rafael, este livro foi o último
presente que eu dei para o Bruno, ele não chegou a ler. Como eu sei que ele te
adorava, gostaria de dar a você, leia por ele e por você, com carinho, Clara,
15/03/06.”
— É muito emocionante pensar no amor desta
mãe, que o filho morreu, e que ela teve o carinho de dividir o amor com o amigo
do filho. Eu sou mãe, e sei como é inconcebível pensar na perda de um filho. Se
ao menos eu pudesse repará-la em relação à perda do livro... — diz Nice,
sonhando com um acaso que a coloque no caminho daquela mãe. — Trabalhar com
livros é apaixonante. O livro não é só a história que o autor conta, mas a
história que o antigo dono também conta.
No início deste ano, Nice encontrou
outro volume de “O poder do jovem”, que ela ainda está pensando se vai para a
caixinha ou não. A mensagem na folha de rosto diz o seguinte: “Para o meu
querido neto Fábio conservar à sua cabeceira, e enfrentar a caminhada da vida
sempre forte! E vencedor! 05/88, vovó Abigail Araújo.” Por enquanto, vai ficar
lá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário