terça-feira, 20 de agosto de 2013

Metáforas da leitura

As metáforas", escreveu o crítico alemão Hans Blumenberg, em nossos dias; "não são mais consideradas primeiro e antes de mais nada como representação da esfera que guia nossas hesitantes concepções teóricas, como um hall de entrada para a formação de conceitos, como um dispositivo temporário dentro de linguagens especializadas que ainda não foram consolidadas, mas sim um meio  autêntico de compreender contextos." Dizer que um autor é um leitor, ou um leitor, um autor, considerar um livro como um ser humano ou um ser humano como um livro, descrever o mundo como texto ou um texto como o mundo são formas de nomear a arte do leitor.
Tais metáforas são muito antigas, com raízes nas primeiras sociedades judaico-cristãs. O crítico alemão E. R. Curtius, num capítulo sobre o simbolismo do livro em seu monumental Literatura europeia e idade média latina, sugeriu que as metáforas do livro começaram na Grécia clássica, mas há poucos exemplos delas, uma vez que a sociedade grega, e posteriormente a romana, não consideravam o livro como um objeto do dia a dia. As sociedades judaica, cristã e islâmica desenvolveram uma profunda relação simbólica com seus livros sagrados, que não eram símbolos da palavra de deus, mas a própria palavra divina. segundo curtius, "a ideia de que o mundo e a natureza são livros deriva da retórica da igreja católica, assumida pelos filósofos místicos dos primórdios da idade média e finalmente transformada em lugar-comum.
Para o místico espanhol do século XVI frei Luís de Granada, se o mundo é um livro, então as coisas deste mundo são as letras do alfabeto com as quais esse livro está escrito. Na Introducción al símbolo de la fé, ele pergunta: "o que são todas as criaturas deste mundo, tão lindas e tão bem-feitas, senão letras separadas e iluminadas que declaram tão justamente a delicadeza  e a sabedoria de seu autor? [...] E nós também [...] tendo sido colocados por vós diante deste maravilhoso livro de todo o universo, de tal forma que por meio de suas criaturas, como se fossem letras vivas, podemos ler a excelência do nosso criador".
"O Dedo de Deus", escreveu sir Thomas Browue em Religio Medici, remodelando a metáfora de frei Luís, "deixou uma inscrição em todas as suas obras, não gráfica ou composta de Letras, mas feita de suas várias formas, constituições, partes e operações que, reunidas apropriadamente, culminam uma palavra que expressa suas naturezas". Séculos depois, o filósofo americano de origem espanhola George Santayana acrescentou: "há livros em que as notas de rodapé, ou os comentários rabiscados por algum leitor nas margens, são mais interessantes do que o texto. O mundo é um desses livros".
Nossa tarefa, como apontou Whitman, é ler o mundo, pois esse livro colossal é a única fonte de conhecimento para os mortais. (Os anjos, segundo santo Agostinho, não precisam ler o livro do mundo porque podem ver o próprio autor e receber dele o mundo em toda a sua glória. Dirigindo-se a Deus, santo Agostinho pondera que os anjos "não têm necessidade de olhar para os céus ou de lê-los para ler Vossa palavra. Pois eles sempre veem Vossa face e ali, sem as sílabas do tempo, leem Vossa vontade eterna. Eles a leem, escolhem-na, amam-na. Estão sempre lendo, e o que leem nunca chega ao fim. O livro que leem não deverá ser fechado, o rolo não deverá ser enrolado novamente. Pois Vós sois o livro deles, e vós sois eterno.)
Os seres humanos, feitos à imagem de Deus, também são livros a serem lidos. Aqui, o ato de ler serve como metáfora para nos ajudar a entender nossa relação hesitante com nosso próprio corpo, o encontro, o toque e a decifração de signos em outra pessoa. Lemos expressões no rosto, seguimos os gestos de um ser amado como num livro aberto. "Tua face, meu cavaleiro", diz lady Macbeth ao esposo, "é como um livro onde os homens podem ler estranhas coisas".  
E Benjamin Franklin, um grande amante dos livros, compôs para si mesmo um epitáfio (infelizmente não utilizado em seu túmulo) no qual a imagem do leitor como livro encontra sua representação plena: O corpo de B. Franklin, impressor, tal como a capa de um velho livro, seu conteúdo arrancado, e despido de suas letras e douradas, jaz aqui, alimento para vermes. Mas a obra não se perderá; pois irá como ele acreditava. Aparecer outra vez em nova e mais elegante edição corrigida e melhorada pelo autor.
Dizer que lemos – o mundo, um livro, o corpo –  não basta. A metáfora da leitura solicita por sua vez outra metáfora, exige ser explicada em imagens que estão fora da biblioteca do leitor e, contudo, dentro do corpo dele, de tal forma que a função de ler é associada a outras funções corporais  essenciais. Ler – como vimos – serve como um veículo metafórico, mas para ser compreendido precisa ele mesmo ser reconhecido por meio de metáforas. Tal como escritores falam em cozinhar uma história, misturar os ingredientes do enredo, ter ideias cruas para uma trama, apimentar uma cena, acrescentar pitadas de ironia, pôr molho, retratar uma fatia de vida, nós, os leitores, falamos em saborear um livro, encontrar alimento nele, devorá-lo de uma sentada, ruminar um texto, banquetearmo-nos com poesia, mastigar as palavras do poeta, viver numa dieta de romances policiais. Em um ensaio sobre a arte de estudar, o erudito inglês do século XVI Francis Bacon catalogou o processo: "Alguns livros são para se experimentar, outros para serem engolidos, e uns poucos para se mastigar e digerir".
Por uma sorte extraordinária sabemos em que dia essa curiosa metáfora foi registrada pela primeira vez. Em 31 de julho de 593 a.c., às margens do Chebar, na terra dos caldeus, Ezequiel, o sacerdote, teve uma visão de fogo na qual viu "a imagem da glória do Senhor" ordenando-lhe que falasse com os filhos rebeldes de Israel. "Abre a boca e come o que te vou dar", diz a visão. Olhei e vi avançando para mim uma mão que segurava um manuscrito enrolado. E foi desdobrado diante de mim: estava coberto com escrita de um e outro lado: eram cânticos de tristeza, de queixumes e de gemidos.
São João, registrando sua visão apocalíptica em Patmos, recebeu a mesma revelação de Ezequiel. Enquanto olhava aterrorizado, um anjo desceu dos céus com um livro aberto e uma voz de trovão disse-lhe que não escrevesse o que aprendera, mas pegasse o livro da mão do anjo. Fui eu, pois, ter com o anjo, dizendo-lhe que me desse o pequeno livro. E ele me disse: "toma-o e devora-o! ele te será amargo nas entranhas, mas, na boca, doce como o mel". Tomei então o pequeno livro da mão do anjo e comecei a comê-lo. de fato, em minha boca tinha a doçura do mel, mas depois de o ter comido, amargou-me nas entranhas. então me foi dito: "urge que ainda profetizes de novo a numerosas nações, povos, línguas e reis”.
Com o tempo, à medida que a leitura se desenvolveu e se expandiu, a metáfora gastronômica tornou-se retórica comum. Na época de Shakespeare, contava-se com ela na conversação literária, e a própria rainha Isabel usou-a para descrever suas leituras devotas: "Eu caminho muitas vezes pelos campos agradáveis das escrituras
sagradas, onde colho as verdes e formosas ervas das sentenças, como-as lendo, mastigo-as meditando e deito-as no assento da memória, li para que possa perceber menos a amargura desta vida miserável". Em 1695, a metáfora já se arraigara tanto na língua que William Congreve pôde parodiá-la na cena de abertura de Love for love [amor por amor], fazendo o pedante Valentine dizer a seu criado: "Lê, lê, imbecil, e refina teu apetite; aprende a viver com instrução; banqueteia tua mente e mortifica tua carne; lê, e ingere teu alimento pelos olhos; fecha tua boca e mastiga o bolo alimentar do entendimento". "Ficareis extremamente gordo com esta dieta de papel", é o comentário do criado.
Por mais que os leitores se apropriem de um livro, no final, livro e leitor tornam-se uma só coisa. O mundo que é um livro, é devorado por um leitor, que é uma letra no texto do mundo; assim, cria-se uma metáfora circular para a infinitude da leitura. Somos o que lemos. O processo pelo qual o círculo se completa não é, argumentava Whitman, apenas intelectual; lemos intelectualmente num nível superficial, apreendendo certos significados e conscientes de certos fatos, mas, ao mesmo tempo, invisivelmente, inconscientemente, texto e leitor se entrelaçam, criando novos níveis de significado e, assim, toda vez que, ingerindo-o, fazemos o texto entregar algo, simultaneamente nasce sob ele outra coisa que ainda não apreendemos. Esse é o motivo por que – como acreditava Whitman, reescrevendo e reeditando seus poemas sem parar – nenhuma leitura pode ser definitiva.  (Alberto Manguel)

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