São todos gestos comuns: tirar os
óculos da caixa, limpá-los com papel ou tecido, com a bainha da blusa ou a
ponta da gravata, empoleirá-los no nariz e firmá-los atrás das orelhas antes de
olhar para a página agora lúcida diante de nós. Então, ajustá-los para cima ou
para baixo sobre o nariz, para colocar as letras em foco, e, depois de algum
tempo, levantá-los e esfregar a pele entre as sobrancelhas, apertando os olhos
fechados para manter afastado o texto-sereia. E o ato final: tirá-los,
dobrá-los e inseri-los entre as páginas do livro para marcar o lugar onde
paramos a leitura.
Na iconografia cristã, Santa Luzia
é representada carregando um par de óculos numa bandeja; os óculos são, com
efeito, olhos que os leitores de visão ruim podem pôr e tirar à vontade. São
uma função destacável do corpo, uma máscara através da qual o mundo pode ser
observado, uma criatura semelhante a um inseto, carregada como um animal de
estimação à caça de um louva-a-deus. Discretos, sentados de pernas cruzadas
sobre uma pilha de livros ou em pé, em expectativa, num canto atravancado de
escrivaninha, eles se tornaram o emblema do leitor, a marca da presença do
leitor, um símbolo do ofício do leitor.
É desnorteante imaginar os muitos
séculos anteriores à invenção dos óculos, séculos durante os quais os leitores
se envergaram para penetrar nas linhas nebulosas de um texto, e é emocionante
imaginar seu alívio extraordinário, quando surgiram os óculos, ao ver
subitamente, quase sem esforço, uma página escrita.
Jorge Luís Borges, que começou a
perder a visão no início da década de 1930, e foi nomeado diretor da Biblioteca
Nacional de Buenos Aires em 1955, quando não enxergava mais, comentou o destino
peculiar do leitor debilitado a quem um dia concedem o reino dos livros:
Que ninguém avilte com lágrimas ou
reprove
Esta declaração da habilidade de
Deus
Que em sua ironia magnífica
Deu-me escuridão e livros ao mesmo
tempo.
Borges comparava o destino desse
leitor no mundo borrado de “vagas cinzas pálidas semelhantes a olvido e sono”
ao destino do rei Midas, condenado a morrer de fome e sede cercado por comida e
bebida. Um episódio da série de televisão Além
da Imaginação trata de um Midas assim, um leitor voraz que é o único homem
a sobreviver a um desastre nuclear. Todos os livros do mundo estão agora à sua
disposição; então, acidentalmente, ele quebra os óculos.
O cristianismo foi a primeira
religião a pôr um livro nas mãos de seu deus, e, a partir da metade do século
XIV, o livro emblemático cristão passou a ser acompanhado por outra imagem, a
dos óculos. A perfeição de Cristo e de Deus Pai não justificaria representá-los
como míopes, mas os Pais da Igreja – São Tomás de Aquino, Santo Agostinho – e os
autores antigos no cânone católico – Cícero, Aristóteles – às vezes foram
representados carregando um douto volume e usando os sábios óculos do
conhecimento.
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