quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Óculos - pra que te quero!?

São todos gestos comuns: tirar os óculos da caixa, limpá-los com papel ou tecido, com a bainha da blusa ou a ponta da gravata, empoleirá-los no nariz e firmá-los atrás das orelhas antes de olhar para a página agora lúcida diante de nós. Então, ajustá-los para cima ou para baixo sobre o nariz, para colocar as letras em foco, e, depois de algum tempo, levantá-los e esfregar a pele entre as sobrancelhas, apertando os olhos fechados para manter afastado o texto-sereia. E o ato final: tirá-los, dobrá-los e inseri-los entre as páginas do livro para marcar o lugar onde paramos a leitura.
Na iconografia cristã, Santa Luzia é representada carregando um par de óculos numa bandeja; os óculos são, com efeito, olhos que os leitores de visão ruim podem pôr e tirar à vontade. São uma função destacável do corpo, uma máscara através da qual o mundo pode ser observado, uma criatura semelhante a um inseto, carregada como um animal de estimação à caça de um louva-a-deus. Discretos, sentados de pernas cruzadas sobre uma pilha de livros ou em pé, em expectativa, num canto atravancado de escrivaninha, eles se tornaram o emblema do leitor, a marca da presença do leitor, um símbolo do ofício do leitor.
É desnorteante imaginar os muitos séculos anteriores à invenção dos óculos, séculos durante os quais os leitores se envergaram para penetrar nas linhas nebulosas de um texto, e é emocionante imaginar seu alívio extraordinário, quando surgiram os óculos, ao ver subitamente, quase sem esforço, uma página escrita.
Jorge Luís Borges, que começou a perder a visão no início da década de 1930, e foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires em 1955, quando não enxergava mais, comentou o destino peculiar do leitor debilitado a quem um dia concedem o reino dos livros:
Que ninguém avilte com lágrimas ou reprove
Esta declaração da habilidade de Deus
Que em sua ironia magnífica
Deu-me escuridão e livros ao mesmo tempo.
Borges comparava o destino desse leitor no mundo borrado de “vagas cinzas pálidas semelhantes a olvido e sono” ao destino do rei Midas, condenado a morrer de fome e sede cercado por comida e bebida. Um episódio da série de televisão Além da Imaginação trata de um Midas assim, um leitor voraz que é o único homem a sobreviver a um desastre nuclear. Todos os livros do mundo estão agora à sua disposição; então, acidentalmente, ele quebra os óculos.
O cristianismo foi a primeira religião a pôr um livro nas mãos de seu deus, e, a partir da metade do século XIV, o livro emblemático cristão passou a ser acompanhado por outra imagem, a dos óculos. A perfeição de Cristo e de Deus Pai não justificaria representá-los como míopes, mas os Pais da Igreja – São Tomás de Aquino, Santo Agostinho – e os autores antigos no cânone católico – Cícero, Aristóteles – às vezes foram representados carregando um douto volume e usando os sábios óculos do conhecimento. 


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