Clarissa Pinkola |
Sempre
que se conta um conto de fadas, a noite vem. Não importa o lugar, não importa a
hora, não importa a estação do ano, o fato de uma história estar sendo contada
faz com que um céu estrelado e uma lua branca entrem sorrateiros pelo beiral e
fiquem pairando acima da cabeça dos ouvintes. Às vezes, ao final de um conto, o
aposento enche-se de amanhecer; outras vezes um fragmento de estrela fica para
trás, ou ainda uma faixa de luz rasga o céu tempestuoso. E não importa o que tenha
ficado para trás, é com essa dádiva que devemos trabalhar: é ela que devemos usar
para criar alma.
Na maior parte das vezes, a hora de contar histórias é determinada pelas
sensibilidades internas e pela necessidade externa. Algumas tradições designam épocas
específicas para contar histórias. Entre as tribos dos pueblos, as
histórias do coiote eram reservadas para serem contadas no inverno. Certas
histórias da Europa Oriental somente são contadas no outono, depois da
colheita. No trabalho com arquétipos e com a cura, avaliamos bem a hora de
contar histórias. Examinamos cuidadosamente a hora, o lugar, a pessoa, a
medicação necessária. No entanto, com grande frequência, mesmo essas medições
são frágeis. Na maioria das vezes, contamos histórias quando somos convocados
por elas, não ao contrário.
Nas
minhas tradições, existe um legado entre os contadores, através do qual um
contador transmite suas histórias a um grupo de "sementes". As
sementes são contadores que, segundo o que o mestre espera, irão preservar a
tradição como a aprenderam. Como as "sementes" são escolhidas é um
processo misterioso que oferece um desafio a uma definição exata, pois ele não
se baseia num conjunto de normas, mas, sim, num relacionamento. As pessoas
escolhem-se mutuamente; às vezes elas vêm ao nosso encontro, mas com maior frequência
tropeçamos umas nas outras e nos reconhecemos como se nos conhecêssemos há
séculos.
Nessa tradição, considera-se que as histórias são escritas como uma leve
tatuagem na pele de quem as viveu. A formação de curanderas, cantadoras
y cuentistas é muito semelhante. Ela deriva da leitura dessa escrita
levíssima, do desenvolvimento do que se encontra nela. Da mesma forma, na
tradição da cantadora/cuentista, as histórias possuem pais, avós
e às vezes padrinhos, que seriam a pessoa que lhe ensinou a história ou que a
deu de presente para você (a mãe ou o pai da história), e a pessoa que ensinou
a história a essa pessoa que a passou para você (o avô da história).
Na minha
opinião é assim que deveria ser. Fornecer os créditos da história é muito
importante, pois mantém o vínculo genealógico: nós estamos numa extremidade; a
placenta, na outra. Os padrinhos da história são geralmente aqueles que
acompanharam a história de uma bênção. Às vezes é muito demorado o relato dos
antecedentes da história, antes que cheguemos à história em si. Essa listagem
da mãe e da avó da história não é um preâmbulo longo e enfadonho, mas é, sim, temperada
de pequenas anedotas. A história mais longa que se segue fica sendo, então,
como um segundo prato.
Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona. Não é uma atividade
inútil. Embora haja o intercâmbio de histórias, quando duas pessoas trocam
histórias como presentes mútuos, na maior parte dos casos elas chegaram a se
conhecer bem. Desenvolveram um relacionamento de parentesco, se ele já não
existia. E é assim mesmo que deve ser.
Apesar de
algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seu sentido mais
antigo as histórias são uma arte medicinal. Existem os que foram convocados por
essa arte medicinal; e os melhores, na minha opinião, são os que se deitaram
com a história e descobriram dentro de si mesmos e em profundidade todas as
partes que se harmonizavam.
Ao lidarmos com as histórias, estamos trabalhando com a energia
arquetípica, que é muito parecida com a eletricidade. Ela pode animar e
iluminar, mas no local errado na hora errada e na quantidade errada, como
qualquer medicamento pode produzir efeitos nem um pouco desejados. Às vezes,
pessoas que coletam histórias não percebem o que estão pedindo quando querem
saber uma história dessa dimensão. Os arquétipos nos modificam. Se não houver
modificação, então não houve nenhum contato real com o arquétipo. Transmitir
uma história é uma responsabilidade muito grande. Temos de nos certificar de
que as pessoas estejam preparadas para as histórias que contam.
No caso
dos melhores contadores que conheço, as histórias crescem das suas vidas como
as raízes fazem crescer a árvore. É que as histórias os criaram, transformando-os
no que eles são. É fácil notar a diferença. Sabemos logo quando alguém criou
uma história e quando a história criou alguém. É deste último caso que trata a
minha tradição.
Pode
acontecer de um desconhecido me pedir uma das histórias que estive escavando e
modelando durante anos. O relacionamento é tudo. Como guardiã dessas histórias,
posso dá-las ou não. Isso não depende de nenhuma lista de pré-requisitos específicos,
mas de uma ciência da alma, de acordo com o dia e com o relacionamento.
O modelo de mestre-aprendiz fornece o tipo de atmosfera conscienciosa na
qual pude ajudar meus aprendizes a procurar e a desenvolver as histórias que
irão aceitá-las, que irão brilhar através delas, não ficar simplesmente na
superfície do seu ser como bijuteria barata. Há muitos tipos de possibilidade.
Poucos são fáceis; os mais difíceis são muito mais numerosos. Positivamente, na
história, ou no bálsamo medicinal, somos capacitadas pelo volume do self que
estamos dispostas a sacrificar para investir nela.
Na
tradição da cantadora, como na tradição da mesemondók, existe o
que se chama de La Invitada, "a convidada" ou a cadeira vazia
a cada vez que a história é contada. Às vezes, durante o relato de uma
história, a alma de uma das ouvintes, ou de mais de uma, vem sentar-se ali por
ser essa a sua necessidade. Embora eu possa ter material para toda uma noite, muitas
vezes altero esse material para ajudar o espírito que veio para a cadeira
vazia, ou para brincar com ele. "A convidada" sempre exprime as
necessidades de todas.
Costumo estimular as pessoas a fazer sua própria escavação da história,
pois as juntas arranhadas, o fato de dormir na terra fria, a procura na
escuridão e as aventuras pelo caminho valem tudo. É preciso que haja um pouco
de sangue derramado em cada história, se quisermos que ela tenha função
balsâmica.
Espero
que vocês saiam e deixem que as histórias lhes aconteçam, que vocês as elaborem,
que as reguem com seu sangue, suas lágrimas e seu riso até que elas floresçam,
até que você mesma esteja em flor. Então, você será capaz de ver os bálsamos
que elas criam, bem como onde e quando aplicá-los. É essa a missão. A única
missão.
Eu sou apaixonada por esse texto, mas não lembrava que era de autoria da Clarissa.Tive acesso a esse texto numa das primeiras oficinas de contação de historias de que participei ha quase 15 anos. Que bom, divulgar e multiplicar boas historias!
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