O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é
salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo
por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.
Inclui.
Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar,
reconhece. E por reconhecer, salva.
Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires.
Um olhar que nasceu na Vila Kephas.Dizem que, em grego, kephas significa
pedra. Por isso um nome tão singular para uma vila de Novo Hamburgo. Kephas foi
inventada mais de uma década atrás pedra sobre pedra. Em regime de mutirão.
Eram operários da indústria naqueles tempos nada longínquos. Hoje,
desempregados da indústria. Biscateiros, papeleiros. Excluídos.
Neste Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um rapaz de 29
anos com o nome de Israel. Por que em todo lugar, por mais cinzento, trágico e
desesperançado que seja, há sempre alguém para ser chutado por expressar a
imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel, para a Vila Kephas,
era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho.
Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou
noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia
de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das ideias, segundo o
senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado
como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado, Israel era
cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória.
Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas.
Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto
gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde
Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a
porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome.
De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno. Eliane a professora, descobriu Israel.
Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um
espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata
pidão, dando a cara a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la. Eliane
viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou
naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando
nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu
nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.
Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o
olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar.
E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram,
Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para
dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espiando para dentro. Cantando no
lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo.
Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto
apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. E,
num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou
bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.
E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de
aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o
pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta,
ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba
feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da
professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um
sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no
chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão,
terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive
hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de
infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas.
Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora,
que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos
olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a
violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos
olhos de Israel.
Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que
você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu
sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares,
promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o
Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove.
Israel, tu me botas na garupa no recreio?
E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de
pedra.
Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o
respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar uma vaga oficial na escola. Já
consegue escreveu o "P" de professora. E ninguém mais lhe atira
pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e
chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A
redenção de Israel foi a revolução da professora.
Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido
de pé pela Vila Pedra.
(18 de setembro de 1999)
Eliane Brum em "A vida que ninguém vê". Arquipélago Editorial.
Porto Alegre, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário