sábado, 5 de agosto de 2017

Memórias semânticas

Todos nós temos nossas máquinas do tempo.
Algumas nos levam pra trás, são chamadas de memórias.
Outras nos levam para frente, são chamadas sonhos.

O ponto de partida para qualificar como semânticas uma parte das minhas memórias foi uma consequência de leituras acerca do processo de memorização que o cérebro executa, a partir de várias divisões ou aspectos da memória, definidas sob a ótica da neurologia.
Desse ponto de vista, as memórias semânticas se caracterizam pelo significado que elas representam para cada pessoa. E aqui, é justamente o ponto focal da minha reflexão, qual seja trazer à tona as memórias que traduzem afeto, contentamento, ternura e até mesmo uma saudade boa que insistimos, por vezes, em sentir. Tais memórias são extremamente valiosas e prescindem de marcações temporais e espaciais; são preciosas tão somente pelo seu significado, pela produção de sentido e, ainda, pela compreensão de que se constituem uma versão (a minha versão) de um determinado momento, e não necessariamente o registro literal da realidade.
Nessas memórias, a sinestesia se faz presente, a começar pelo som porque, como disse Samuel Howe, quando se ouve boa música, fica-se com saudade de algo que nunca se teve e nunca se terá. Isso significa que dificilmente escaparemos de sentir saudade, o que não implica necessariamente sentir tristeza, embora uma vez ou outra ela se faça presente porque não há como eximi-la da nossa história pela escolhas que fazemos e pelas perdas inevitáveis que as escolhas determinam.
Na esteira dessas divagações, é interessante perceber que nem sempre somos nós quem escolhemos as músicas; talvez haja uma sintonia que ocasiona a conexão que ignoramos a origem, todavia ela se estabelece naturalmente e se perpetua até quando nos é (e for) possível lembrar. Ainda como parte desse processo harmônico, a música nos encanta em espaços e momentos inusitados, em que os nossos olhos brilham e a mente silencia para o coração sentir. Isso me remete ao pensamento de Shopenhauer: a música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende.
Nessa escala sinestésica, o cheiro tem o seu espaço, o que não significa que estejamos falando tão somente do aroma dos líquidos alojados em frascos. Há momentos em que paira no ar um cheiro que nem sempre é possível identificar a fragrância porque a origem não é de um produto determinado, palpável, mas sim do ambiente que já se encontra impregnado pelas próprias características e somente alguns conseguem identificar esse aroma.
Permeando todas as nuances das memórias semânticas está a afetividade que, naturalmente, aflora quando algum fator – externo ou interno – desencadeia as reminiscências, o que nos permite empreender uma viagem. E, nesse contexto, há dias que, por si só, despertam ou inspiram a evocação, seja de uma melodia, seja de um aroma; e o sábado parece ser um dia assim pela própria atmosfera peculiar do seu lugar no calendário. Já li que o sábado é a rosa da semana, talvez porque nos leve a uma espécie de limbo, onde enxergamos a passado e vislumbramos o porvir.  
Há, também, lugares que remontam a outros espaços pelo efeito causado por um detalhe que os olhos captam em meio a tantos outros que compõem determinado cenário, o que desencadeia um processo de reconstituição de imagens ou de recortes de conversas numa nítida ilustração de que tudo o que vivemos está bem guardado, na expectativa de um sinal para despertar.   
É bem verdade que as memórias semânticas são tênues, ainda que tenham uma presença física, quase viva. E isso pode ser exemplificado a partir de um outro aspecto, o estilo – algo que não pode, evidentemente, ser associado à roupa. Isso porque o estilo é o que traduz o movimento da alma, que revela o que pensamos. Em determinados contextos e de forma inusitada, enxergamos algum estilo que prontamente é associado a imagens e textos remotos, embora precisemos admitir a possibilidade de que, às vezes, uma parte dessas memórias já tenha fugido ou se confundido com os sonhos. Como saber?
Pôr fim a tais elucubrações não significa dizer que foram esgotadas as nuances semânticas da memória, por isso o mais adequado seria dizer, talvez, que se trata somente de uma pausa...

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