Eis a
resposta de Umberto Eco ao cardeal Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão, à
pergunta: Em que o senhor baseia a certeza e a
imperatividade de seu agir moral sem fazer apelo, para fundar a universalidade
de uma ética, a princípios metafísicos ou, de qualquer forma, a valores
transcendentes, e sequer a imperativos categóricos universalmente válidos?
Caro Carlo Maria Martini,
Sua
carta tirou-me de um grave embaraço, para colocar-me em outro de igual
gravidade. Até agora tenho sido eu (e não por decisão minha) a abrir a
discussão, e quem fala primeiro fatalmente interroga, esperando que o outro
responda. Daí meu embaraço ao sentir-me inquisitório. E muito apreciei a
decisão e humildade com que o senhor, por três vezes, desafiou a lenda de que
os jesuítas responderiam sempre a uma pergunta com outra pergunta. Agora,
porém, sinto-me embaraçado para responder sua pergunta, pois minha resposta
seria significativa se eu tivesse tido uma educação leiga e, ao contrário, tive
uma forte influência católica até (para assinalar o momento de uma ruptura) os
vinte e dois anos. A perspectiva laica não foi para mim uma herança absorvida
passivamente, mas o fruto, muito sofrido, de uma longa e lenta maturação, e não
estou certo de que algumas de minhas convicções morais não dependem ainda de
uma influência religiosa que marcou minhas origens. Hoje, já em idade avançada,
vi (em uma universidade católica estrangeira que tem em seus quadros
professores de formação leiga e deles exige, no máximo, manifestações de
respeito formal no curso dos rituais religiosos-acadêmicos) alguns de meus
colegas chegarem aos sacramentos sem que acreditassem na Presença Real e,
portanto, sem que tivessem sequer se confessado. Com um frêmito, depois de
tantos anos, adverti ainda o horror do sacrilégio. Todavia, creio poder dizer
em que fundamentos se baseia, hoje, minha "religiosidade laica" –
porque creio firmemente que existem formas de religiosidade, e logo sentido do
Sagrado, do Limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos
supera, mesmo na ausência da fé em uma divindade pessoal e providente. Mas
isso, posso percebê-lo em sua carta, o senhor também sabe. O que o senhor tem
se perguntado é o que há de vinculante, arrebatador e irrenunciável nestas
formas de ética.
Gostaria
de tomar as coisas a distância. Certos problemas éticos tornam-se mais claros
para mim ao refletir sobre alguns problemas semânticos – e não se preocupe
porque alguns dizem que falamos difícil: eu poderia ter sido encorajado a
pensar fácil demais pela "revelação" da massa média, previsível por
definição. Que aprendam a pensar difícil, pois nem o mistério nem a evidência
são fáceis.
Meu
problema era se existem "universais semânticos", ou seja, noções
elementares comuns a toda a espécie humana que podem ser expressas por todas as
línguas. Problema não tão óbvio, no momento em que sabemos que muitas culturas
não reconhecem noções que para nós parecem evidentes: por exemplo, a de
substância a que pertencem certas propriedades (como quando dizemos "a
maçã é vermelha") ou a de identidade (a=a). Estou convencido de que certamente
existem noções comuns a todas as culturas, e que todas elas se referem às
posições de nosso corpo no espaço. Somos animais de postura ereta, por isso é
cansativo permanecer muito tempo de cabeça para baixo e, portanto, temos uma
noção comum de alto e baixo, tendendo a privilegiar o primeiro sobre o segundo.
Igualmente temos noções de direita e esquerda, do estar parado e do caminhar,
do estar em pé ou deitado, do arrastar-se e do saltar, da vigília e do sono.
Como todos temos membros, sabemos o que significa bater em uma matéria
resistente, penetrar em uma substância mole ou líquida, esmagar, tamborilar,
amassar, chutar, talvez até dançar. A lista poderia continuar longamente e
compreender o ver, o ouvir, comer ou beber, ingurgitar ou expelir. E certamente
todo homem tem noção de que coisa significa perceber, recordar, sentir desejo,
medo, tristeza ou alívio, prazer ou dor, e emitir sonos que exprimam estes
sentimentos. Portanto (e já entramos na esfera do direito), temos concepções
universais acerca do constrangimento: não se deseja que alguém nos impeça de
falar, ver, ouvir, dormir, ingurgitar ou expelir, ir aonde quisermos; sofremos
se alguém nos amarra ou mantém-nos segregados, nos bate, fere ou mata, nos
sujeita a torturas físicas ou psíquicas que diminuam ou anulem nossa capacidade
de pensar. Notemos que até agora coloquei em cena apenas uma espécie de Adão
bestial e solitário, que ainda não sabe o que seja a relação sexual, o prazer
do diálogo, o amor pelos filhos, a dor da perda de uma pessoa amada; mas já
nessa fase, pelo menos para nós (se não para ele ou ela), esta semântica já se
tornou a base de uma ética: devemos, antes de tudo, respeitar o direito da
corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e pensar. Se nossos
semelhantes tivessem respeitado esses "direitos do corpo" não
teríamos tido o massacre dos Inocentes, os cristãos no circo, a noite de São Bartolomeu,
a fogueira para os hereges, os campos de extermínio, a censura, as crianças nas
minas, os estupros na Bósnia.
Mas
como é que, mesmo elaborando de imediato o seu repertório instintivo de noções
universais, o/a besta – toda estupor e ferocidade – que coloquei em cena
poderia chegar a compreender que deseja fazer certas coisas e que não deseja
que lhe façam outras, e também que não deveria fazer aos outros o que não quer
que façam a si mesmo? Porque, felizmente, o Éden populou-se rapidamente. A
dimensão ética começa quando entra em cena o outro. Toda lei, moral ou
jurídica, regula ações interpessoais, inclusive aquelas com um Outro que a
impõe.
Também
o Senhor atribui ao leigo virtuoso a convicção de que o outro está em nós. Não
se trata, porém, de uma vaga propensão sentimental, mas de uma condição
"fundadora". Assim como ensinam as mais laicas entre as ciências, é o
outro, é o seu olhar, que nos define e nos forma. Nós (assim como não
conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem
somos sem o olhar e a resposta do outro. Mesmo quem mata, estupra, rouba,
espanca, o faz em momentos excepcionais, mas pelo resto da vida lá está a
mendigar aprovação, amor, respeito, elogios a seus semelhantes. E mesmo àqueles
a quem humilha ele pede o reconhecimento do medo e da submissão. Na falta desse
reconhecimento, o recém-nascido abandonado na floresta não se humaniza (ou,
como Tarzan, busca o outro a qualquer custo no rosto de uma macaca), e
poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual,
sistematicamente, todos tivessem decidido não nos olhar jamais ou comportar-se
como se não existíssemos.
Como
então houve ou há culturas que aprovam o massacre, o canibalismo, a humilhação
do corpo de outrem? Simplesmente porque essas culturas restringem o conceito de
"outros" à comunidade tribal (ou à etnia) e consideram os
"bárbaros" como seres desumanos; e sequer os cruzados sentiam os
infiéis como um próximo que devia ser tão amado assim. É que o reconhecimento
do papel dos outros, a necessidade de respeitar neles aquelas exigências que
para nós são inabdicáveis, é produto de um crescimento milenar. Até mesmo
o mandamento cristão do amor foi enunciado e aceito (com dificuldade) apenas
quando os tempos estavam maduros para tal. Mas o Senhor pergunta: essa
consciência da importância do outro é suficiente para fornecer-me uma base
absoluta, um fundamento imutável para um comportamento ético? Bastaria que eu
respondesse que também aqueles que o Senhor define como "fundamentos absolutos"
não impedem que muitos fiéis pequem sabendo que pecam, e o discurso acabaria
aqui: a tentação do mal também está presente em quem tem uma noção fundamentada
e revelada do bem. Mas gostaria de contar-lhe duas anedotas que muito me
fizeram pensar.
Uma
refere-se a um escritor – que se proclama católico, embora sui generis –
do qual não cito o nome apenas porque disse o que vou contar em uma conversa
particular e eu não sou nenhum sicofanta. Foi no tempo de João XXIII e meu
velho amigo, celebrando entusiasticamente suas virtudes, disse (com evidente intenção
paradoxal): "João XXIII deve ser ateu. Só quem não acredita em Deus pode
querer tão bem a seus semelhantes!" Como todos os paradoxos, este também
continha um grão de verdade: sem pensar no ateu (figura cuja psicologia me
foge, porque kantianamente não vejo como se possa não acreditar em Deus, e
considerar que não se pode comprovar Sua existência e acreditar firmemente na inexistência
de Deus, pensando poder prová-lo), parece-me evidente que uma pessoa que
nunca teve a experiência da transcendência, ou perdeu-a, pode dar um sentido à
própria vida e à própria morte, pode sentir-se confortado só com o amor pelos
outros, com a tentativa de garantir a alguém uma vida vivível, mesmo depois que
ele mesmo já tenha desaparecido. É verdade que há quem não creia e não se
preocupe em dar um sentido à própria morte, mas há também quem afirme crer e,
no entanto, seja capaz de arrancar o coração de uma criança para garantir a
própria vida. A força de uma ética julga-se através do comportamento dos
santos, não dos insipientes cujus deus venter est.
E
passo à segunda anedota. Eu era ainda um jovem católico de dezesseis anos e
aconteceu de empenhar-me em um duelo verbal com um conhecido mais velho que eu
e tido como "comunista", no sentido que tinha esse termo nos terríveis
anos 50. E como me provocasse, coloquei-lhe a seguinte pergunta decisiva: como
podia ele, um incrédulo, dar um sentido àquela coisa tão insensata que seria a
própria morte? E ele respondeu-me: "Pedindo antes de morrer um funeral
civil. Assim, já não estarei presente, mas terei deixado aos outros um
exemplo." Creio que também o senhor pode admirar a fé profunda na
continuidade da vida, o sentido absoluto do dever que animava aquela resposta.
E foi este sentido que levou muitos incrédulos a morrer sob tortura para não
trair os amigos, outros a infectarem-se com a peste por cuidar dos infectados.
Essa é, até hoje, a única coisa que leva um filósofo a filosofar, um escritor a
escrever: deixar uma mensagem na garrafa porque, de alguma maneira, aqueles que
virão poderão acreditar ou achar belo aquilo em que ele acreditou ou que achou
belo.
Este
sentimento tão forte justificaria, realmente, uma ética tão determinada e
inflexível, tão solidamente fundamentada quanto a dos que creem na moral
revelada, na sobrevivência da alma, nos prêmios e nos castigos? Tentei basear
os princípios de uma ética laica em um fato natural (e, como tal, também para o
Senhor, resultado de um projeto divino) como a nossa corporalidade e a ideia de
que só sabemos instintivamente que temos uma alma (ou algo que exerce tal
função) em virtude da presença do outro. Surge daí que aquela que defini como
"ética laica" é, no fundo, uma ética natural, que também não é
desconhecida para os que creem. O instinto natural, levado à devida maturação e
autoconsciência, não é um fundamento que dê garantias suficientes? É verdade
que podemos pensar que não é estímulo suficiente para a virtude:
"assim", pode dizer que não crê, "ninguém saberá do mal que secretamente
estou fazendo". Mas pense bem, quem não crê considera que ninguém o
observa lá do alto e sabe, portanto, que – exatamente por isso – também não há
alguém que o possa perdoar. Se sabe ter feito o mal, sua solidão não conhecerá
limites e sua morte será desesperada. Tentará antes, mais que o crente, a
purificação da confissão pública, pedirá perdão aos outros. Isto ele o sabe no
íntimo de suas fibras e, portanto, terá que perdoar antecipadamente os outros.
Senão como poderíamos explicar que o remorso seja um sentimento que mesmo os
incrédulos experimentam? Não gostaria que se instaurasse uma oposição seca
entre quem crê em um Deus transcendente e quem não crê em nenhum princípio supraindividual.
Gostaria de recordar que era dedicado justamente à ética o grande livro de
Spinoza que começa com uma definição de Deus como causa de si mesmo. Salvo que
esta divindade spinoziana, bem o sabemos, não é nem transcendente nem pessoal:
mesmo assim, também da visão de uma grande e única substância cósmica, na qual
um dia seremos reabsorvidos, pode emergir uma visão da tolerância e da
benevolência, exatamente porque é no equilíbrio e na harmonia da substância
única que estamos todos interessados. E o estamos porque de alguma maneira
acreditamos que é impossível que essa substância não tenha sido enriquecida ou
deformada por aquilo que, durante milênios, estivemos fazendo. Assim, ousarei
dizer (não é uma hipótese metafísica, é apenas uma tímida concessão à esperança
que jamais nos abandona) que, mesmo em tal perspectiva, poderíamos recolocar o
problema de alguma vida depois da morte. Hoje o universo eletrônico nos sugere
que podem existir sequências de mensagens que se transferem de um suporte
físico a outro sem perder suas características inimitáveis, e parecem sobreviver
como puro imaterial algoritmo no instante em que, abandonado um suporte, ainda
não estão impressas em um outro. E quem sabe se a morte, assim como a implosão,
não seja explosão e estampido em algum lugar entre os vórtices do universo, do
software (que outros chama de "alma") que elaboramos vivendo, feito
também de recordações e remorsos pessoais e, portanto, de sofrimento insanável
ou sendo de paz pelo dever cumprido, e amor.
Mas o
Senhor diz que, sem o exemplo e a palavra de Cristo, qualquer ética laica
careceria de uma justificativa de fundo que tenha uma força de convicção
ineludível. Por que retirar do laico o direito de valer-se do exemplo do Cristo
que perdoa? Procure, Carlo Maria Martini, para o bem da discussão e do
conforto em que acredita, aceitar, mesmo que por um só instante, a hipótese de
que Deus não exista: que o homem, por um erro desajeitado do acaso, tenha surgido
na Terra entregue a sua condição de mortal e, como se não bastasse, condenado a
ter consciência disso e que seja, portanto, imperfeitíssimo entre os animais (e
permita-me o tom leopardiano dessa hipótese). Esse homem, para encontrar
coragem para esperar a morte, tornou-se forçosamente um animal religioso,
aspirando construir narrativas capazes de fornecer-lhe uma explicação e um modelo,
uma imagem exemplar. E entre tantas que consegue imaginar – algumas
fulgurantes, outras terríveis, outras ainda pateticamente consoladoras – chegando
à plenitude dos tempos, tem, num momento determinado, a força religiosa, moral
e poética de conceber o modelo do Cristo, do amor universal, do perdão aos
inimigos, da vida ofertada em holocausto pela salvação do outro. Se fosse um
viajante proveniente de galáxias distantes e visse-me diante de uma espécie que
soube propor-se tal modelo, admiraria, subjugado, tanta energia teogônica e
julgaria redimida esta espécie miserável e infame, que tantos horrores cometeu,
apenas pelo fato de que conseguiu desejar e acreditar que tal seja a verdade. Abandone
agora também a hipótese e deixe-a para os outros: mas admita que, se
Cristo fosse realmente apenas o sujeito de um conto, o fato de que esse conto
tenha sido imaginado e desejado por bípedes implumes que sabem apenas que não
sabem, seria tão milagroso (milagrosamente misterioso) quanto o fato de que o
filho de um Deus real tenha realmente encarnado. Este mistério natural e
terreno não cessaria de perturbar e adoçar o coração de que não crê.
Por isso, considero que, nos pontos fundamentais, uma ética natural – respeitada na profunda religiosidade que a anima – possa ir de encontro a princípios de uma ética baseada na fé na transcendência, a qual não pode deixar de reconhecer que os princípios naturais foram esculpidos em nosso coração com base em um programa de salvação. Se restam, como certamente hão de restar, margens não-superáveis, não ocorre diversamente no encontro entre religiões diversas. E nos conflitos de fé deverão prevalecer a caridade e a prudência.
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