sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O que aprendemos dos lírios dos campos e das aves do céu

 

Era uma vez um lírio que cresceu num lugar afastado junto a um ribeiro que corria, e era bem conhecido de algumas urtigas, mais um punhado de outras florezinhas na vizinhança. O lírio estava, segundo as verdadeiras palavras do Evangelho, vestido mais formosamente do que Salomão em sua glória (Mateus 6.28), além disso, sem preocupações e alegre enquanto durava o dia. Desapercebida e vividamente o tempo passava, como água corrente do riacho. Ocorreu, porém, que um dia chegou um passarinho e visitou o lírio, retornou no outro dia, o que pareceu ao lírio estranho e inexplicável que o pássaro não permanecesse no mesmo lugar, tal como as florezinhas, estranho que o pássaro pudesse ter tais caprichos. O lírio se apaixonou pelo pássaro. Mas esse passarinho era malvado; ao invés de se colocar no lugar do lírio e se alegrar com ele em sua felicidade inocente, o pássaro queria fazer-se de importante, sentindo sua liberdade e fazendo o lírio sentir sua amarração. E não só isso, mas o pássaro era também conversador, e contava de coisas soltas e firmes, verdadeiras e falsas, de como em outros lugares havia, em grande quantidade, lírios magníficos, totalmente diferentes, onde havia uma alegria e uma animação, um perfume, uma riqueza de cores, um canto de pássaros que excedia toda descrição. Assim contava o pássaro e a cada uma de suas narrativas costumava acabar com uma observação que para o lírio era humilhante, de que este, em comparação com tal glória, não era nada, que era tão insignificante e já começava a questionar o próprio fato de se chamar lírio.

Assim, o lírio foi ficando preocupado, quanto mais escutava o pássaro tanto mais preocupado ficava; não mais dormia à noite e não mais acordava alegre pela manhã; sentia-se preso e amarrado, achava tedioso o correr da água do riacho o dia todo. Começava agora a se ocupar consigo mesmo e com as condições de sua vida em autoaflição – o dia inteiro. “Pode até ser bom”, dizia ele para si mesmo, “de vez em quando, para variar, escutar o correr da água do riacho, mas entra dia e sai dia ouvir a mesma coisa eternamente: é afinal demasiado enfadonho”. “Estar sem companhia ou na companhia das urtigas ardidas, que afinal não são decerto uma companhia para um lírio para um lírio: não dá para suportar”. “E então ter uma aparência tão humilde, como no meu caso”, dizia o lírio para si mesmo, “ser tão insignificante, como o passarinho diz que eu sou: oh, por que afinal eu não nasci num outro lugar, oh, por que eu não me tornei, afinal, uma Coroa imperial! Pois o passarinho lhe contara que a Coroa imperial era considerada o mais belo entre os lírios, e era objeto de inveja de todos os outros lírios. O lírio percebeu, decerto, infelizmente, que a preocupação o abalara; mas então falou para si mesmo apelando para a razão, de um modo que ele mesmo se convenceu de que a preocupação era correta; “pois”, dizia ele, “meu desejo não é, afinal de contas, nenhum desejo irrazoável, eu não exijo algo de impossível, tornar-me alguma coisa que eu não seja, um pássaro, por exemplo, meu desejo é tão somente tornar-me um lírio glorioso ou quem sabe até o mais glorioso de todos”.

Enquanto ocorria tudo isso, o passarinho voava para lá e para cá, e a inquietação do lírio era alimentada a cada uma de suas visitas e a cada uma de suas separações. Por fim, ele se confiou inteiramente ao pássaro. Uma hora noturna combinaram que na manhã seguinte aconteceria uma mudança, e se poria um fim à preocupação. Na manhã seguinte, bem cedo, veio o passarinho; com seu bico escavou a terra ao redor da raiz do lírio de modo que assim ele pudesse ficar livre. Tendo sucedido isso, o pássaro tomou o lírio sob a sua asa e voou dali embora. Em efeito, a combinação era a de que o passar voaria com o lírio para lá onde floresciam os lírios vistosos; depois, o pássaro deveria novamente auxiliar para deixá-lo plantado ali, para ver se com a mudança de lugar e o novo ambiente não sucederia ao lírio tornar-se um lírio vistoso na companhia dos outros muitos, ou talvez até uma Coroa imperial, invejada por todos os demais.

Aí, no caminho, o lírio ia murchando. Se o lírio aflito tivesse contentado em ser lírio, não se teria afligido; se não tivesse preocupado, teria ficado parado lá onde estava – onde estava, em toda a sua formosura, teria sido justamente aquele lírio sobre o qual o pastor falou no domingo passado, quando repetia a palavra do Evangelho: “Observai o lírio, eu vos digo que nem Salomão em toda a sua glória vestiu-se como ele” (Mateus 6.28).

O lírio é o ser humano. O pássaro malvado é o inquieto pensamento da comparação, que vagueia por toda a parte, em círculos, inconstante e cheio de caprichos, e recolhe o saber maligno da diferença; e tal como o pássaro não se colocou no lugar do lírio, assim a comparação o faz, com ela o ser humano coloca-se no lugar de um outro, ou coloca um outro no seu lugar. Na aflição da comparação, o preocupado vai afinal tão longe que esquece, por causa da diferença, que ele é um ser humano, de modo que desesperadamente acha que é de tal modo diferente de outros homens que quase crê ser diferente daquilo que é ser homem.

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