Era uma vez um lírio que cresceu
num lugar afastado junto a um ribeiro que corria, e era bem conhecido de
algumas urtigas, mais um punhado de outras florezinhas na vizinhança. O lírio
estava, segundo as verdadeiras palavras do Evangelho, vestido mais formosamente
do que Salomão em sua glória (Mateus 6.28), além disso, sem preocupações e
alegre enquanto durava o dia. Desapercebida e vividamente o tempo passava, como
água corrente do riacho. Ocorreu, porém, que um dia chegou um passarinho e
visitou o lírio, retornou no outro dia, o que pareceu ao lírio estranho e
inexplicável que o pássaro não permanecesse no mesmo lugar, tal como as
florezinhas, estranho que o pássaro pudesse ter tais caprichos. O lírio se
apaixonou pelo pássaro. Mas esse passarinho era malvado; ao invés de se colocar
no lugar do lírio e se alegrar com ele em sua felicidade inocente, o pássaro
queria fazer-se de importante, sentindo sua liberdade e fazendo o lírio sentir
sua amarração. E não só isso, mas o pássaro era também conversador, e contava
de coisas soltas e firmes, verdadeiras e falsas, de como em outros lugares
havia, em grande quantidade, lírios magníficos, totalmente diferentes, onde
havia uma alegria e uma animação, um perfume, uma riqueza de cores, um canto de
pássaros que excedia toda descrição. Assim contava o pássaro e a cada uma de
suas narrativas costumava acabar com uma observação que para o lírio era
humilhante, de que este, em comparação com tal glória, não era nada, que era
tão insignificante e já começava a questionar o próprio fato de se chamar
lírio.
Assim, o lírio foi ficando
preocupado, quanto mais escutava o pássaro tanto mais preocupado ficava; não
mais dormia à noite e não mais acordava alegre pela manhã; sentia-se preso e
amarrado, achava tedioso o correr da água do riacho o dia todo. Começava agora
a se ocupar consigo mesmo e com as condições de sua vida em autoaflição – o dia
inteiro. “Pode até ser bom”, dizia ele para si mesmo, “de vez em quando, para
variar, escutar o correr da água do riacho, mas entra dia e sai dia ouvir a
mesma coisa eternamente: é afinal demasiado enfadonho”. “Estar sem companhia ou
na companhia das urtigas ardidas, que afinal não são decerto uma companhia para
um lírio para um lírio: não dá para suportar”. “E então ter uma aparência tão
humilde, como no meu caso”, dizia o lírio para si mesmo, “ser tão
insignificante, como o passarinho diz que eu sou: oh, por que afinal eu não
nasci num outro lugar, oh, por que eu não me tornei, afinal, uma Coroa
imperial! Pois o passarinho lhe contara que a Coroa imperial era considerada o
mais belo entre os lírios, e era objeto de inveja de todos os outros lírios. O
lírio percebeu, decerto, infelizmente, que a preocupação o abalara; mas então
falou para si mesmo apelando para a razão, de um modo que ele mesmo se
convenceu de que a preocupação era correta; “pois”, dizia ele, “meu desejo não
é, afinal de contas, nenhum desejo irrazoável, eu não exijo algo de impossível,
tornar-me alguma coisa que eu não seja, um pássaro, por exemplo, meu desejo é
tão somente tornar-me um lírio glorioso ou quem sabe até o mais glorioso de
todos”.
Enquanto ocorria tudo isso, o
passarinho voava para lá e para cá, e a inquietação do lírio era alimentada a
cada uma de suas visitas e a cada uma de suas separações. Por fim, ele se confiou
inteiramente ao pássaro. Uma hora noturna combinaram que na manhã seguinte
aconteceria uma mudança, e se poria um fim à preocupação. Na manhã seguinte,
bem cedo, veio o passarinho; com seu bico escavou a terra ao redor da raiz do
lírio de modo que assim ele pudesse ficar livre. Tendo sucedido isso, o pássaro
tomou o lírio sob a sua asa e voou dali embora. Em efeito, a combinação era a
de que o passar voaria com o lírio para lá onde floresciam os lírios vistosos;
depois, o pássaro deveria novamente auxiliar para deixá-lo plantado ali, para
ver se com a mudança de lugar e o novo ambiente não sucederia ao lírio
tornar-se um lírio vistoso na companhia dos outros muitos, ou talvez até uma
Coroa imperial, invejada por todos os demais.
Aí, no caminho, o lírio ia
murchando. Se o lírio aflito tivesse contentado em ser lírio, não se teria
afligido; se não tivesse preocupado, teria ficado parado lá onde estava – onde
estava, em toda a sua formosura, teria sido justamente aquele lírio sobre o
qual o pastor falou no domingo passado, quando repetia a palavra do Evangelho: “Observai
o lírio, eu vos digo que nem Salomão em toda a sua glória vestiu-se como ele”
(Mateus 6.28).
O lírio é o ser humano. O pássaro malvado é o inquieto pensamento da comparação, que vagueia por toda a parte, em círculos, inconstante e cheio de caprichos, e recolhe o saber maligno da diferença; e tal como o pássaro não se colocou no lugar do lírio, assim a comparação o faz, com ela o ser humano coloca-se no lugar de um outro, ou coloca um outro no seu lugar. Na aflição da comparação, o preocupado vai afinal tão longe que esquece, por causa da diferença, que ele é um ser humano, de modo que desesperadamente acha que é de tal modo diferente de outros homens que quase crê ser diferente daquilo que é ser homem.
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