domingo, 1 de maio de 2011

Manifesto filosófico ( I )

1. Existe um mundo. Em termos de probabilidade, isso é algo que esbarra no limite do impossível. Teria sido muito mais fidedigno se, por acaso, não existisse nada. Nesse caso, ninguém teria começado a perguntar por que não havia nada.
2. Ante um olhar imparcial, o mundo não se apresenta apenas como um improvável fato único, mas como uma constante carga para a razão. Quer dizer, se é que existe a razão, se é que existe uma razão neutra. Assim soa a voz de dentro. Assim soa a voz do Curinga.
3. A voz é articulada aqui e agora pelos descendentes dos anfíbios. Sai com a tosse dos sobrinhos dos sáurios terrestres na selva de asfalto. Os descendentes dos mamíferos peludos perguntam se existe alguma razão além deste vergonhoso casulo que não para de crescer em todas as direções.
4. Alguém pergunta: quão grande é a probabilidade que algo tem de nascer do nada? Ou ao contrário, claro: que probabilidade existe de que algo sempre tenha existido? Ou, não obstante: pode-se calcular a possibilidade de que a matéria cósmica de repente, uma bela manhã, acorde consciente de si?
5. Se existe um Deus, Ele não só é um ás em deixar vestígios, mas, sobretudo, um mestre em se esconder. E o mundo não é dos que falam além da conta. O firmamento continua calado. Não há muito mexerico entre as estrelas. Mas ninguém ainda se esqueceu da grande explosão. Desde então, o silêncio reinou ininterruptamente, e tudo o que existe se afasta de tudo. Ainda é possível topar com a Lua. Ou com um cometa. Não espere que o recebam com amáveis clamores. No céu não se imprimem cartões de visita.
6. No princípio foi a grande explosão, e isso já faz muito tempo. Aqui só se falará do bis da noite. Ainda é possível conseguir uma entrada. Numa palavra: a recompensa consiste em criar o público do espetáculo. Sem a plateia, não teria sentido chamar de espetáculo o que aconteceu. Continua havendo lugares vagos.
7. Quem pôde se alegrar com os fogos de artifício cósmicos quando nada além de gelo e fogo ocupava a plateia do firmamento? Quem pôde afirmar que esse atrevido primeiro anfíbio não apenas tinha percorrido de gatinhas um trecho a partir da margem, mas tinha dado um passo de gigante pelo longo caminho até a orgulhosa visão de conjunto do primata sobre o princípio de tal caminho? O aplauso à grande explosão só chegou quinze bilhões de anos depois de a explosão ocorrer.
8. Criar um mundo inteiro tem necessariamente de ser considerada uma façanha louvabilíssima, mesmo que tivesse causado ainda maior admiração se um mundo inteiro tivesse sido capaz de criar a si mesmo. E vice-versa: a experiência de ter sido criado não é nada em comparação com a incrível sensação de quem criou a si mesmo do nada e pode ficar de pé sem a ajuda de ninguém.
9. O Curinga nota que cresce por si mesmo, nota-o nos braços e nas pernas, nota que não é simplesmente produto da sua imaginação. Nota que está crescendo esmalte e marfim em seu focinho antropomorfo. Nota o leve peso das costelas do primata sob a camiseta, nota o pulso rítmico que bate sem cessar, bombeando o líquido quente por todo o corpo.
10. Não é de estranhar que o Criador, segundo dizem, tenha retrocedido um ou dois passos quando modelou o homem, com terra que pegou no chão, soprando-lhe vida pelo nariz para transformá-lo numa criatura viva. O mais surpreendente desse acontecimento foi a falta de espanto de Adão.
11. O Curinga se move entre os elfos de açúcar em forma de primata. Baixa os olhos e vê duas mãos desconhecidas, acaricia com uma das mãos um rosto que não conhece, toca sua testa e sabe que ali dentro age como um fantasma o enigma do eu, o plasma da alma, a gelatina do conhecimento. Mais perto do núcleo das coisas não poderá chegar. Tem a sensação de ser um cérebro transplantado, logo já não é ele.
12. Um grande anseio percorre o mundo. Quanto maior e mais poderosa é uma coisa, mais profunda a melancolia após o parto. Quem ouve a melancolia do grão de areia? Se não existisse nada, ninguém sentiria falta de nada.
13. Levamos uma alma que não conhecemos e somos levados por ela. Quando o enigma se ergue sobre duas patas sem ter sido solucionado, é que chegou a nossa vez. Quando as imagens sonhadas beliscam o próprio braço sem acordar, somos nós. Porque somos o enigma que ninguém sabe resolver. Somos o conto encerrado em sua própria imagem. Somos os que andamos sem parar e nunca chegamos à claridade.

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