sábado, 9 de julho de 2011

Gênesis: história com moral ou mito com significado?

A maioria dos ocidentais supõe que nossa cultura tem somente um mito da criação: aquele que aparece nos primeiros três capítulos do Gênesis. Poucos sabem que existe uma alternativa: o mito da criação segundo os gnósticos. Esse mito, que talvez nos surpreenda por sua novidade, contém visões da criação e de nossas vidas que vale a pena considerar.
Stephan A. Hoeller
William Blake, poeta gnóstico do início do séc. XIX, escreveu: Ambos lemos a Bíblia dia e noite, mas onde você lê preto eu leio branco. Palavras similares talvez tenham sido pronunciadas pelos primeiros gnósticos a respeito de seus adversários nas fileiras do judaísmo e do cristianismo. A visão não gnóstica, ou ortodoxa, na cristandade primitiva, considerava a maior parte da Bíblia, particularmente o Gênesis, uma história com moral. Adão e Eva eram personagens cuja trágica transgressão resultou no pecado original, do qual os seres humanos que vieram depois tiveram de aprender profundas lições morais. Uma consequência dessa leitura é o status mais do que ambivalente das mulheres, consideradas parceiras da desobediência de Eva no Paraíso. Tertuliano, um dos Pais da Igreja que desprezou os gnósticos, assim escreveu a um grupo de mulheres cristãs:
Sois a porta do inferno... Sois aquela que persuadiu aquele que o diabo não ousava atacar... Sabeis que sois cada uma de vós uma Eva? A sentença de Deus sobre vosso sexo subsiste nesta época; a culpa, necessariamente, subsiste também. (De cultu feminarum 1.12)
Contudo, os cristãos gnósticos, cujo legado de literatura sagrada encontramos na biblioteca de Nag Hammadi, interpretam o Gênesis não como uma história dotada de moral mas como um  mito dotado de significado. Na sua visão, Adão e Eva não são figuras históricas, e sim representações de dois princípios intrapsíquicos inerentes a todo ser humano. Adão era a personificação dramática da psique, ou "alma": o complexo mente/emoção do qual se originam o pensamento e o sentimento. Eva era pneuma, ou "espírito", simbolização da consciência mais elevada, transcendental.
A Bíblia apresenta duas versões da criação da primeira mulher. Uma nos diz que Eva foi formada de uma costela de Adão (Gênesis 2:21); outra, que Deus criou o primeiro casal humano, macho e fêmea, à sua imagem e semelhança (Gênesis 1:26-7). Esta última sugere que o próprio Deus Criador possui uma natureza diádica que combina características masculinas e femininas. Em geral, os gnósticos endossam essa versão, da qual desenvolveram várias interpretações. Ela outorgam igualdade à mulher, enquanto a da costela de Adão a subordina ao homem.
Para os antigos gnósticos, não era digna de crédito a imagem convencional de Eva, que a apresentava como aquela que foi desencaminhada pela serpente do mal e que, com seu poder de sedução feminino, persuadiu Adão a desobedecer a Deus. Em sua visão, Eva não era uma crédula idiota transformada em tentadora persuasiva; ao contrário, era uma mulher sábia, uma verdadeira filha de Sofia, a Sabedoria celestial. Nessa condição, foi ela quem despertou o Adão adormecido. No Apocryphon [literalmente, "livro secreto"] de João, Eva diz: Eu entrei na masmorra que é a prisão do corpo. E assim falei:
- Aquele que me ouve, que desperte de seu sono profundo. - E então ele [Adão] se lamentou e verteu lágrimas... E ele falou perguntando:
- Quem é esta que chama o meu nome e com isso me traz esperança, eu que estou preso aos grilhões desta prisão? - E então eu falei:
- Eu sou o pensamento do espírito impoluto... Erga-se e lembre-se... e siga a sua raiz, que sou eu... e acautele-se com o sono profundo.
Na escritura Sobre a Origem do Mundo, Eva é apresentada como filha, e em especial a mensageira, da divina Sofia. E é nessa condição que ela vai até Adão como instrutora e o desperta de seu sono de inconsciência. Na maioria dos escritos gnósticos, Eva aparece como superior a Adão. A conclusão a se tirar desses textos é obviamente diferente daquela dos Pais da Igreja, como Tertuliano: o homem tem uma dívida com a mulher por tê-lo trazido à vida e à consciência. Não se pode deixar de imaginar como se teria desenvolvido a atitude ocidental em relação à mulher caso a visão gnóstica de Eva tivesse sido amplamente aceita.

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