segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"Confissões" de Flória Emília

Flória Emília amou profundamente Aurel, ele que se tornaria exemplo cristão, bispo de Hipona, Padre da Igreja Católica e, por fim, santo, Santo Agostinho.

Carta de Flória Emília
a Aurélio Agostinho
[...] Desde que voltei de Milão, há quase quinze anos, tenho andado em tuas pegadas. Ou talvez devesse dizer que tenho retraçado nossas velhas trilhas em Cartago. Primeiro li tudo o que pude sobre filosofia, pois tinha de descobrir o que havia nela que podia dividir um par amoroso. Se tivesses te ligado a outra mulher, eu poderia querer conhecê-la. Mas minha rival não era outra mulher que eu pudesse ver a olho nu, era um princípio filosófico. Assim, para entender-te melhor, eu devia avançar pela mesma estrada que havias palmilhado. Eu tinha de ler filosofia.
Minha rival não era apenas rival minha. Era rival de todas as mulheres, era o próprio anjo da morte do amor. Referes-te a ela como Continência. Livro Oitavo, Aurel! Escreves: "...apresentava-se a mim a casta dignidade da Continência, com serena alegria e sem desordem. Convidava-me, acariciando-me com pureza, para que viesse sem hesitação. Estendia-me as mãos piedosas, cheias de uma multidão de boas obras, para me receber e abraçar".
Aqui escreves um bocado em muito poucas palavras. Nem mesmo tentas esconder como permitiste ser seduzido. Não posso negar que meu coração ferveu de ciúmes quando li essa seção em particular. Pois não foi de forma parecida que te deste a mim quando ardíamos de juventude? Não foi "acariciando-te com pureza" que tentei te abraçar? Tenho vontade de dizer com Horácio: quando os tolos querem evitar um erro, geralmente fazem o oposto!
Comecei com Cícero, tal como fizeste. Em teu Livro Terceiro escreves sobre ele: "Atraía-me aquela exortação, pelo fato de não me excitar a amar, buscar, seguir, abraçar com ardor essa ou aquela seita, mas simplesmente a sabedoria, qualquer que fosse". E a sabedoria, Aurel, foi o que me incitou a ler os filósofos e os grandes poetas. Li também os quatro evangelhos. Uma vez que estávamos separados, devotei minha vida totalmente à Verdade - como outrora te devotaste à Continência. Ainda me és querido, embora deva acrescentar que a verdade me é ainda mais querida. Agora passo por ser uma mulher instruída que dá aulas particulares aqui em Cartago. Não achas engraçado, por falar nisso, que seja eu agora a dar aulas de retórica? Ou perdeste também o senso de humor? Não há muito humor nas tuas confissões, Aurel. Não era assim conosco. Podíamos rir e fazer graça do anoitecer ao amanhecer. Hoje, dizes provavelmente que o humor é o mesmo que "concupiscência", ou "amor à boa vida".
De qualquer forma, devo agradecer-te por teus livros. Nenhum outro escrito ajudou-me a compreender melhor por que quiseste separar-te de mim [...].

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