domingo, 9 de outubro de 2011

Ser humano: poético e prosaico

Disse um dos mais inspirados poetas alemães, Hölderlin: "é poeticamente que o ser humano habita a Terra". E foi completado mais tarde pelo pensador francês, Edgar Morin: "é também prosaicamente que o ser humano habita a Terra". Poesia e prosa são dois gêneros literários diferentes porque supõem dois modos existenciais distintos.
A poesia supõe uma pessoa criadora. A criação faz com que a pessoa se sinta tomada por uma força maior que ele. Força que lhe traz emoções inusitadas, ideias novas, metáforas significativas, sentidos surpreendentes. Sob força da criação e em situação extática a pessoa canta, dança, cria gestos simbólicos e sai da normalidade. Emerge, então, o xamã que se esconde dentro de cada pessoa. O xamã era uma figura central em algumas culturas ocidentais e orientais. Em nós ele existe como arquétipo, como aquela figura capaz de sintonizar com as energias do universo, de harmonizar-se com a sinfonia universal e de vibrar junto com as cordas do coração, do outro, da natureza, do cosmo e de Deus. Por esta capacidade se desocultam novos e surpreendentes sentidos da realidade.
Que significa asseverar que "o ser humano habita poeticamente a Terra"? Significa que ele experimenta a Terra como algo vivo, evocativo, falante, grandioso, majestático e mágico. A Terra é paisagem, cores, odores, imensidão, vibração, fascínio, profundidade, mistério. Todos vivemos o modo de ser dos poetas. Somos poetas. É a águia e o sim-bólico que estão em nós que nos transportam para o mundo do enlevo e do encantamento. A Terra é Gaia, Pacha Mama, Magna Mater, Grande Mãe.
Mas habitamos também prosaicamente a Terra. A prosa literária recolhe o cotidiano e o rotineiro da vida. É o nosso dia a dia cinzento, feito de tensões familiares e sociais, de horários, de obrigações, de deveres profissionais, de ocupações, preocupações e discretas alegrias ligadas à subsistência; é urdido de interesses a serem considerados; influenciado pelo status social que impõe opções e comportamentos. O prosaico possui o seu valor inestimável. É a dimensão-galinha em nós que nos dá a sensação de paz e de uma navegação tranquila pelo mar da vida.
Poético e prosaico, águia e galinha são complementares e se revezam de tempos em tempos. É porque experimentamos a dimensão-galinha que ansiamos alçar voos e apreciar a dimensão-águia. A cultura de massas desnaturou a águia e a galinha. O lazer, que seria ocasião de ruptura do cotidiano e liberação da águia, foi aprisionado pela indústria do entretenimento que incita ao excesso [...] A águia é coagida a ser apenas galinha, o dia-bólico sem sua referência ao sim-bólico.
A dimensão-galinha mantém o ser humano cativo dentro da opacidade de seu pequeno mundo: submetido à simples luta pela sobrevivência, extenuado de trabalhos, sem esperança de um dia repousar e gozar de seu merecido lazer. E, quando chega ao lazer, perde a liberdade e a força do voo da águia, pois se sente refém daqueles que já pensaram tudo para ele: como organizar o seu lazer, como propiciar-lhe fortes emoções e como fabricar-lhe uma experiência inesquecível. E o conseguiram. Mas como tudo é artificialmente induzido, sacrificam a dimensão-águia. O efeito final é o vazio existencial e o doloroso empobrecimento do espírito. A galinha reduzida à cerca do seu galinheiro.
Por isso, face a esta cultura do excesso e do esbanjamento, importa resgatar a águia e não permitir que se desnature a galinha.

Um comentário:

  1. Muito bom o texto. Embora eu tenha uma preferência escancarada pela águia, é ótimo poder descobrir que não posso negar a grandeza da Galinha...

    ResponderExcluir