quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Repensar: "Conhecimento e Libertação" (Otto Maduro)

[...]Todos queremos ser parte de processos de libertação muito claros, lineares, sem ambiguidades nem conflitos, nem retrocessos, nem vítimas. Perdoem-me por propor uma perspectiva "aguada": esses processos não existem. Não têm existido nunca. Não existirão jamais. Os processos de liberdade que existem, que têm existido e que existirão são processos humanos. E como tais, são complexos, ambíguos, cheios de contradições, conflitos e retrocessos. São dinâmicas frágeis e falíveis.
Suponhamos por um momento que, na verdade, desafortunadamente, qualquer processo de libertação seja ambíguo, complicado, cheio de conflitos, incoerências, retrocessos e vítimas. A maneira de conhecer a realidade quase seguramente nos levará então à conclusão de que não há motivo para nos empenharmos em processos de libertação. Melhor seria aproveitarmos o sistema e buscar a salvação individual na vida depois da morte.
Essa é a maneira de pensar que mais convém a um sistema social injusto e destrutivo como este no qual vivemos hoje. Uma maneira de conhecer que desconhece, que deixa o mundo como está é uma opção todavia mais cheia de vítimas, ambiguidades, conflitos, incoerências e retrocessos.
Porém, há outros modos possíveis de conhecer a realidade e de nos relacionarmos com ela. Por exemplo, reconhecer humildemente, sinceramente, que há muitas mais coisas que desconhecemos do que conhecemos. Reconhecer que todo o conhecimento da realidade é sempre incompleto, provisório, interesseiro, criativo e polêmico. Que todo conhecimento quiçá poderia e deveria - para ser genuinamente libertador, verdadeiramente atento a toda pessoas, comunidade, cultura, clamor e sonho - permanecer aberto a mudanças, a ser questionado e criticado, a ser enriquecido e transformado, a perecer, inclusive, para servir de fértil abono a nova vida, novas instituições, ideias, opiniões, sugestões, valores e dinâmicas humanas. Que nenhuma maneira de conhecer deveria tornar-se rígida, sectária, excludente, única, nem prepotente - se é que quer de verdade estar a serviço de processos profundos, autocríticos, democráticos e não-violentos de libertação crescente da raça humana; não a favor de novas hierarquias, privilégios, opressões e exclusões.
Que tal uma espécie de "mudança na mudança": desenvolver dinâmicas coletivas contínuas de revisão humilde e crítica fraterna das muitas maneiras opressivas em que conhecemos a realidade e nos relacionamos com ela? Talvez seja interessante desenvolver uma atitude espiritual, tanto individual como comunitária, de buscar constantemente e corrigir diariamente as múltiplas maneiras como o sistema de opressão (capitalista, classista, machista, heterossexual, racista) se infiltra em nós imperceptivelmente até nos pequenos gostos, nos grandes amores e nas ambições secretas. Possivelmente dali surjam bons exemplos de maneiras realmente libertadoras, vivificadoras, humanizantes, de conhecer a realidade para mudá-la enquanto se vai mudando. Modos de conhecermos e de nos relacionarmos com a realidade que, em si mesma, encarnem e realizem aqui e agora - ao menos um pouco - o sonho de um mundo em que a cooperação, a solidariedade, e ajuda desinteressada mútua, o respeito à diversidade, à humanidade, à alegria e a ternura vençam, pouco a pouco (em casa, no bairro, na escola, no emprego e na Igreja), o abuso, a arrogância, a violência, a exploração e a indiferença.

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