Contar uma única versão sobre nós mesmos pode significar
abrir mão de viver.
Eliane Brum
Desde
muito cedo percebi que a trajetória de uma vida continha bem mais do que os
conflitos visíveis. Em parte, me transformei numa contadora de histórias ao
intuir que a forma como é contada uma vida pode significar a possibilidade
desta vida. Assim como pode determinar sua morte. O mundo é um palco onde se
digladiam as versões – e o poder é usado para impor a história única como se
fosse toda a verdade. Não só entre os países, mas na vida social e também
dentro de casa. Compreender o poder da narrativa é o primeiro passo para
construir uma vida que vale a pena. É também a chave para alcançar a
complexidade – ou as várias versões – da vida do outro.
Na
semana passada, duas experiências me fizeram voltar a refletir sobre o poder
das histórias, um tema recorrente nesta coluna e no meu trabalho. A primeira
foi o filme Preciosa,
já lindamente comentado neste site na coluna de Cristiane Segatto. A outra foi
uma palestra de uma escritora nigeriana chamada Chimamanda Adichie.
Em
Preciosa, filme
de Lee Daniels em cartaz nos cinemas, concorrente ao Oscar, a personagem é uma
negra gorda e enorme, abusada sexualmente pelo pai e de várias outras maneiras
pela mãe, que frequenta há anos a escola sem que ninguém perceba que não sabe
ler. Preciosa, este também é o nome enormemente simbólico da personagem, é um
nada para muitos – e também para si mesma. Um nada difícil de olhar. Ela mesma,
quando se olha no espelho, não se reconhece.
Desde
que assisti ao filme, na sexta-feira de Carnaval, o recomendo com veemência aos
meus amigos. Mas, assim como as pessoas ao redor de Preciosa, no filme, tinham
dificuldade de olhar para ela, alguns amigos têm resistência em ir ao cinema
“assistir àquela desgraceira”. Ou acompanhar uma personagem que contém em seu
corpo todas as características relacionadas aos perdedores. Alguns amigos viram
o trailer e
decidiram fugir de Preciosa.
É
uma pena. E é o que tenho tentado mostrar a eles – e agora a vocês. Não ver
Preciosa é não permitir que ela seja vista de outra maneira. E perder uma
oportunidade rara de descobrir que a vida – não apenas a dela, mas também a
nossa – pode ser decodificada de uma forma mais generosa se nos reconhecermos
em olhos dispostos a enxergar além dos estereótipos. Neste sentido, ao decidir
assistir a este filme – tão diferente do que se costuma produzir em Hollywood –
o espectador está se tornando parte da transformação de Preciosa. E isso é
genial como proposta cinematográfica.
Na
capa do livro de Sapphire, uma professora do Harlem em cuja obra se baseou o
filme, há uma frase perfeita: “Você testemunha o nascimento de uma alma”. É
exatamente isso. O filme é o caminho de Preciosa a partir do momento em que se
vê refletida nos olhos da professora que a ensina a ler. Olhos dispostos a
enxergar uma alma onde a maioria só via banha, violência e miséria.
Ao
percorrermos com ela esse percurso, vivemos momentos muito duros. Mas é também
imensamente redentor. No momento em que Preciosa descobre que há outras versões
possíveis para a sua vida – e que ela mesma pode construir narrativas melhores
– o mundo que é ela se amplia. E com essa experiência, também o mundo que somos
nós é ampliado. Pelo menos foi o que eu senti. Saí do cinema mais larga. E
amando a humanidade inteira. (Sem contar que a interpretação da atriz que faz o
papel de sua mãe já faz parte da história do cinema. Se Mo’Nique não ganhar o
Oscar de atriz coadjuvante vou jogar tomates na televisão lá de casa.)
Preciosa
nos evoca o perigo da história única. Até não encontrar um olhar acolhedor onde
se reconhecer, ela só se reconhecia no não-olhar de sua mãe. A escola que
frequentara até então continuava olhando para ela sem ver, o que a manteve
analfabeta por anos. Só quando encontrou uma narrativa alternativa para si
mesma, Preciosa teve alguma chance de ter não só uma vida, mas também uma alma.
Este
é o tema da palestra de Chimamanda Adichie, autora de Meio Sol Amarelo (Cia das
Letras, 2008). Esta escritora de 32 anos pertencia a uma espécie de classe
média da Nigéria, filha de um professor universitário e de uma secretária. Em
sua palestra no TED (Ideas Worth Spreading), ela conta uma história feita de
embates narrativos para mostrar como a história única aniquila a vida.
Linda
e bem-humorada, Chimamanda mostra como a redução das histórias fez mal a sua
maneira de olhar a vida de outros em seu próprio país. E fez mal à forma como
outros olharam para a sua vida quando se mudou para os Estados Unidos – e sua
colega de quarto só conseguia enxergá-la a partir dos estereótipos ligados a um
“país” chamado África. Nessa narrativa, Chimamanda percorre as várias crenças
sobre a África – e não deixa de mostrar como ela mesma embarcou na tentação das
versões hegemônicas, como quando fez uma viagem ao México e descobriu, ao andar
pelas ruas de Guadalajara no primeiro dia, que tinha chegado até ali acreditando
que imigrante era tudo que um mexicano
era.
É pela
intuição do enorme poder de transformação das histórias contadas que Chimamanda
se transforma numa escritora. E também Preciosa. A professora faz mais do que
ensiná-la a ler. Todos os dias, Preciosa precisa escrever um diário. Ao contar
sua vida, literalmente nas páginas do caderno, ela descobre que é mais do que
lhe haviam contado até então. Mais complexa e multidimensional.
Ao
escrever sobre sua vida com papel e caneta, Preciosa descobre que pode
reescrever sua vida na concretude das ruas. E é o que faz. Agora, ela pode se
reconhecer nos olhos de outros. Ela gosta da imagem que vê. E nós, na poltrona
do cinema, incomodados no início com toda a coleção de estereótipos que ela
representa, também gostamos do que passamos a enxergar.
Numa
reportagem que fiz em 2007, sobre a primeira geração de escritores das
periferias do Brasil, especialmente de São Paulo, mostro os dados de uma
pesquisa de Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB).
Ao analisar os romances brasileiros entre 1990 e 2004, ela revela que 94% dos
autores e 84% dos protagonistas são brancos – e apenas 24% dos personagens são
pobres. Ou seja, a história contada pela nossa literatura mostra um mundo de
gente branca e de classe média.
É
ruim? Não exatamente. É pobre. Não há nenhum problema em escrever e ler livros
com protagonistas brancos e de classe média. Brancos de classe média fazem
parte da sociedade brasileira. E era só o que nos faltava ter de fazer uma
literatura politicamente correta. O problema não é o que existe, mas o que não
existe, o que não está lá. O perigoso é não existir livros com outras cores e
realidades, com diferentes autores e personagens.
A
grande novidade também no Brasil, que é a razão da reportagem citada, é que
hoje vem se ampliando também a pluralidade das vozes na literatura. Com a
entrada de novos protagonistas no cenário das letras, nós, leitores, temos
acesso a novas maneiras de ver o mundo e de estar no mundo. E a diversidade
sempre faz bem para a vida, tanto a subjetiva quanto a concreta.
Chimamanda
conta como fazia mal a ela não fazer parte da literatura, como personagem, já
que os livros disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos
colonizadores britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam boa parte
dos dias falando sobre o tempo: “Será que vai fazer sol amanhã?”. Fazia todo o
sentido para um britânico, mas era estranhíssimo para uma menina nigeriana, na
medida em que não era apenas um dos mundos ao qual tinha acesso através
dos livros, mas toda a literatura disponível.
Ao
mesmo tempo, quando ela se torna escritora, é cobrada que seus romances não são
suficientemente “africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de
uma determinada maneira, como se só pudesse contar uma única história. Como se
um escritor do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, por exemplo, só
pudesse escrever sobre a violência e só pudesse escrever usando gírias. A arte
é o território da liberdade. E da reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até
sermos nós mesmos.
Quando
Preciosa, no filme, escapa de sua vida impossível para divagações em que é
glamourosa, desejada e talentosa, descobrimos porque ela ainda está viva. É
pela fantasia que ela mantém a salvo a melhor parte de si mesma. A parte
incorruptível de si mesma. Como faz a maioria de nós, mesmo sem ter uma
realidade tão perversa como Preciosa.
Lembro
que só suportei minha inadequação, na infância, porque ficava inventando
enredos na minha cabeça em que era a protagonista. Quando era obrigada a
interagir com as crianças da minha idade, só suportava ouvir aquelas conversas
em que não encontrava pontos de conexão porque podia escapar pela fantasia. Me
sentia um ET no mundo real, mas era uma heroína em meu próprio mundo. Ter a
possibilidade de “me contar” em minha literatura íntima, assim como para
Preciosa, em outras proporções, me assegurou a sanidade. Até hoje, quando a
vida fica muito difícil e nem consigo entender o que falam ao meu redor,
mergulho em narrativas inventadas – e nem por isso menos verdadeiras.
O
perigo da história única, mais fácil de analisar na geopolítica do mundo,
começa dentro de casa, na família. Como no caso de Preciosa. Quando nascemos, é
o olhar da mãe o primeiro a nos constituir. Só nos reconhecemos como um ser
para além da mãe a partir deste primeiro olhar fundador. Na infância, é no
primeiro mundo privado que habitamos, o de dentro de casa, que iniciamos nosso
embate com as histórias únicas. Quando os pais determinam que este filho é
inteligente, aquele é preguiçoso e um terceiro é malvado, o mais provável é que
aqueles filhos assim rotulados cumpram a profecia dos pais. Por isso, é comum
ouvirmos: “fulano desde pequeno já era assim...”. Claro, como poderia ser
diferente?
A
versão dos pais sobre nós é a primeira versão narrativa da vida de cada um. E
ela nos marca para sempre. Para o bem – e para o mal. Seja pela displicência,
seja pela opressão. Quando é para o mal, se torna uma prisão. Não somos o que
podemos vir a ser, mas um estereótipo fechado, vendido como a única verdade
sobre nós mesmos. Este é o olhar que nos transforma em pedra. Afinal, as
ovelhas negras de cada família são ou tornaram-se?
Se
não encontramos alguém que rompa as grades deste olhar na escola, nosso
primeiro mundo público, temos poucas chances na vida. Se, ao contrário de
ampliar as versões narrativas, o professor cimentar ainda mais os rótulos
familiares ou criar outros tão perniciosos quanto – com sentenças como “este é
inteligente”, “aquele é burro”, “o outro violento”, “aquele não tem jeito”,
“este é um caso perdido” – as chances minguam.
A
história única na família e na escola é o ato mais covarde cometido por pais e
professores que não sabem o que fazem – ou sabem, mas não conseguem ou não
querem fazer diferente. Educar é ampliar as possibilidades narrativas da vida
de cada um – e da vida dos outros.
De
certo modo, crescer é tornar-se capaz de quebrar a sucessão de histórias únicas
sobre a nossa existência. Foi o que aconteceu com Preciosa, a partir do olhar
libertador da professora.
Se
você estiver atolado na vida porque lhe fizeram acreditar em uma única versão,
reaja. Não acredite. Exercite a dúvida sobre si mesmo – e sobre o outro. Será
que é assim mesmo? Será que isso é tudo o que sou? Será que é só isso que posso
ser? Tornar-se adulto é ter a coragem de se contar como alguém múltiplo e
contraditório, um habitante do território das possibilidades.
No
filme, Preciosa diz uma frase maravilhosa, num dia especialmente tenebroso.
Algo assim: “Que bom que Deus ou não sei quem inventou os novos dias”. É isso.
Há sempre um novo dia para todos nós. Um em que podemos nos reinventar.
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