quarta-feira, 3 de maio de 2023

Envelhecer... (Em defesa da Mulher) - Blandinne Faustine

 

A capa da Vogue filipina emocionou o mundo. Há nela uma “miúda” de 106 anos!

Dizem que, a partir de uma certa idade, nós as mulheres, ficamos invisíveis. Que a nossa atuação na cena da vida diminui e que nos tornamos inexistentes para um mundo onde só cabe o impulso da juventude.
Honestamente, não sei se me tornei invisível para o mundo, é possível que sim. Porém, nunca fui tão consciente da minha existência como agora, nunca me senti tão protagonista da minha vida e nunca desfrutei tanto cada momento da minha existência.
Descobri que não sou uma princesa de contos de fadas e descobri o ser humano sensível e também muito forte que sou, com as suas misérias e as suas grandezas. Descobri que posso permitir-me o luxo de não ser perfeita, de estar cheia de defeitos, de ter fraquezas, de me enganar, de fazer coisas indevidas e de não corresponder às expectativas dos outros. E apesar disso…
Gostar de mim!
Quando me olho ao espelho e procuro quem fui… sorrio àquela que sou… Alegro-me do caminho percorrido, assumo as minhas contradições. Sinto que devo saudar com carinho a jovem que fui, mas deixá-la de lado porque agora atrapalha-me, o seu mundo de ilusões e fantasias já não me interessa. Na verdade, é bom viver sem ter tantas obrigações e não ter de sentir um desassossego permanente causado pela necessidade de correr atrás de tantos sonhos.
A vida é tão curta e a tarefa de vivê-la é tão difícil, que quando começamos a aprendê-la, já é hora de partir.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O que aprendemos dos lírios dos campos e das aves do céu

 

Era uma vez um lírio que cresceu num lugar afastado junto a um ribeiro que corria, e era bem conhecido de algumas urtigas, mais um punhado de outras florezinhas na vizinhança. O lírio estava, segundo as verdadeiras palavras do Evangelho, vestido mais formosamente do que Salomão em sua glória (Mateus 6.28), além disso, sem preocupações e alegre enquanto durava o dia. Desapercebida e vividamente o tempo passava, como água corrente do riacho. Ocorreu, porém, que um dia chegou um passarinho e visitou o lírio, retornou no outro dia, o que pareceu ao lírio estranho e inexplicável que o pássaro não permanecesse no mesmo lugar, tal como as florezinhas, estranho que o pássaro pudesse ter tais caprichos. O lírio se apaixonou pelo pássaro. Mas esse passarinho era malvado; ao invés de se colocar no lugar do lírio e se alegrar com ele em sua felicidade inocente, o pássaro queria fazer-se de importante, sentindo sua liberdade e fazendo o lírio sentir sua amarração. E não só isso, mas o pássaro era também conversador, e contava de coisas soltas e firmes, verdadeiras e falsas, de como em outros lugares havia, em grande quantidade, lírios magníficos, totalmente diferentes, onde havia uma alegria e uma animação, um perfume, uma riqueza de cores, um canto de pássaros que excedia toda descrição. Assim contava o pássaro e a cada uma de suas narrativas costumava acabar com uma observação que para o lírio era humilhante, de que este, em comparação com tal glória, não era nada, que era tão insignificante e já começava a questionar o próprio fato de se chamar lírio.

Assim, o lírio foi ficando preocupado, quanto mais escutava o pássaro tanto mais preocupado ficava; não mais dormia à noite e não mais acordava alegre pela manhã; sentia-se preso e amarrado, achava tedioso o correr da água do riacho o dia todo. Começava agora a se ocupar consigo mesmo e com as condições de sua vida em autoaflição – o dia inteiro. “Pode até ser bom”, dizia ele para si mesmo, “de vez em quando, para variar, escutar o correr da água do riacho, mas entra dia e sai dia ouvir a mesma coisa eternamente: é afinal demasiado enfadonho”. “Estar sem companhia ou na companhia das urtigas ardidas, que afinal não são decerto uma companhia para um lírio para um lírio: não dá para suportar”. “E então ter uma aparência tão humilde, como no meu caso”, dizia o lírio para si mesmo, “ser tão insignificante, como o passarinho diz que eu sou: oh, por que afinal eu não nasci num outro lugar, oh, por que eu não me tornei, afinal, uma Coroa imperial! Pois o passarinho lhe contara que a Coroa imperial era considerada o mais belo entre os lírios, e era objeto de inveja de todos os outros lírios. O lírio percebeu, decerto, infelizmente, que a preocupação o abalara; mas então falou para si mesmo apelando para a razão, de um modo que ele mesmo se convenceu de que a preocupação era correta; “pois”, dizia ele, “meu desejo não é, afinal de contas, nenhum desejo irrazoável, eu não exijo algo de impossível, tornar-me alguma coisa que eu não seja, um pássaro, por exemplo, meu desejo é tão somente tornar-me um lírio glorioso ou quem sabe até o mais glorioso de todos”.

Enquanto ocorria tudo isso, o passarinho voava para lá e para cá, e a inquietação do lírio era alimentada a cada uma de suas visitas e a cada uma de suas separações. Por fim, ele se confiou inteiramente ao pássaro. Uma hora noturna combinaram que na manhã seguinte aconteceria uma mudança, e se poria um fim à preocupação. Na manhã seguinte, bem cedo, veio o passarinho; com seu bico escavou a terra ao redor da raiz do lírio de modo que assim ele pudesse ficar livre. Tendo sucedido isso, o pássaro tomou o lírio sob a sua asa e voou dali embora. Em efeito, a combinação era a de que o passar voaria com o lírio para lá onde floresciam os lírios vistosos; depois, o pássaro deveria novamente auxiliar para deixá-lo plantado ali, para ver se com a mudança de lugar e o novo ambiente não sucederia ao lírio tornar-se um lírio vistoso na companhia dos outros muitos, ou talvez até uma Coroa imperial, invejada por todos os demais.

Aí, no caminho, o lírio ia murchando. Se o lírio aflito tivesse contentado em ser lírio, não se teria afligido; se não tivesse preocupado, teria ficado parado lá onde estava – onde estava, em toda a sua formosura, teria sido justamente aquele lírio sobre o qual o pastor falou no domingo passado, quando repetia a palavra do Evangelho: “Observai o lírio, eu vos digo que nem Salomão em toda a sua glória vestiu-se como ele” (Mateus 6.28).

O lírio é o ser humano. O pássaro malvado é o inquieto pensamento da comparação, que vagueia por toda a parte, em círculos, inconstante e cheio de caprichos, e recolhe o saber maligno da diferença; e tal como o pássaro não se colocou no lugar do lírio, assim a comparação o faz, com ela o ser humano coloca-se no lugar de um outro, ou coloca um outro no seu lugar. Na aflição da comparação, o preocupado vai afinal tão longe que esquece, por causa da diferença, que ele é um ser humano, de modo que desesperadamente acha que é de tal modo diferente de outros homens que quase crê ser diferente daquilo que é ser homem.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Quando o outro entra em cena – Umberto Eco (de 'Cinco Escritos Morais')

Eis a resposta de Umberto Eco ao cardeal Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão, à pergunta: Em que o senhor baseia a certeza e a imperatividade de seu agir moral sem fazer apelo, para fundar a universalidade de uma ética, a princípios metafísicos ou, de qualquer forma, a valores transcendentes, e sequer a imperativos categóricos universalmente válidos?

Caro Carlo Maria Martini,

Sua carta tirou-me de um grave embaraço, para colocar-me em outro de igual gravidade. Até agora tenho sido eu (e não por decisão minha) a abrir a discussão, e quem fala primeiro fatalmente interroga, esperando que o outro responda. Daí meu embaraço ao sentir-me inquisitório. E muito apreciei a decisão e humildade com que o senhor, por três vezes, desafiou a lenda de que os jesuítas responderiam sempre a uma pergunta com outra pergunta. Agora, porém, sinto-me embaraçado para responder sua pergunta, pois minha resposta seria significativa se eu tivesse tido uma educação leiga e, ao contrário, tive uma forte influência católica até (para assinalar o momento de uma ruptura) os vinte e dois anos. A perspectiva laica não foi para mim uma herança absorvida passivamente, mas o fruto, muito sofrido, de uma longa e lenta maturação, e não estou certo de que algumas de minhas convicções morais não dependem ainda de uma influência religiosa que marcou minhas origens. Hoje, já em idade avançada, vi (em uma universidade católica estrangeira que tem em seus quadros professores de formação leiga e deles exige, no máximo, manifestações de respeito formal no curso dos rituais religiosos-acadêmicos) alguns de meus colegas chegarem aos sacramentos sem que acreditassem na Presença Real e, portanto, sem que tivessem sequer se confessado. Com um frêmito, depois de tantos anos, adverti ainda o horror do sacrilégio. Todavia, creio poder dizer em que fundamentos se baseia, hoje, minha "religiosidade laica" – porque creio firmemente que existem formas de religiosidade, e logo sentido do Sagrado, do Limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma divindade pessoal e providente. Mas isso, posso percebê-lo em sua carta, o senhor também sabe. O que o senhor tem se perguntado é o que há de vinculante, arrebatador e irrenunciável nestas formas de ética.

Gostaria de tomar as coisas a distância. Certos problemas éticos tornam-se mais claros para mim ao refletir sobre alguns problemas semânticos – e não se preocupe porque alguns dizem que falamos difícil: eu poderia ter sido encorajado a pensar fácil demais pela "revelação" da massa média, previsível por definição. Que aprendam a pensar difícil, pois nem o mistério nem a evidência são fáceis.

Meu problema era se existem "universais semânticos", ou seja, noções elementares comuns a toda a espécie humana que podem ser expressas por todas as línguas. Problema não tão óbvio, no momento em que sabemos que muitas culturas não reconhecem noções que para nós parecem evidentes: por exemplo, a de substância a que pertencem certas propriedades (como quando dizemos "a maçã é vermelha") ou a de identidade (a=a). Estou convencido de que certamente existem noções comuns a todas as culturas, e que todas elas se referem às posições de nosso corpo no espaço. Somos animais de postura ereta, por isso é cansativo permanecer muito tempo de cabeça para baixo e, portanto, temos uma noção comum de alto e baixo, tendendo a privilegiar o primeiro sobre o segundo. Igualmente temos noções de direita e esquerda, do estar parado e do caminhar, do estar em pé ou deitado, do arrastar-se e do saltar, da vigília e do sono. Como todos temos membros, sabemos o que significa bater em uma matéria resistente, penetrar em uma substância mole ou líquida, esmagar, tamborilar, amassar, chutar, talvez até dançar. A lista poderia continuar longamente e compreender o ver, o ouvir, comer ou beber, ingurgitar ou expelir. E certamente todo homem tem noção de que coisa significa perceber, recordar, sentir desejo, medo, tristeza ou alívio, prazer ou dor, e emitir sonos que exprimam estes sentimentos. Portanto (e já entramos na esfera do direito), temos concepções universais acerca do constrangimento: não se deseja que alguém nos impeça de falar, ver, ouvir, dormir, ingurgitar ou expelir, ir aonde quisermos; sofremos se alguém nos amarra ou mantém-nos segregados, nos bate, fere ou mata, nos sujeita a torturas físicas ou psíquicas que diminuam ou anulem nossa capacidade de pensar. Notemos que até agora coloquei em cena apenas uma espécie de Adão bestial e solitário, que ainda não sabe o que seja a relação sexual, o prazer do diálogo, o amor pelos filhos, a dor da perda de uma pessoa amada; mas já nessa fase, pelo menos para nós (se não para ele ou ela), esta semântica já se tornou a base de uma ética: devemos, antes de tudo, respeitar o direito da corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e pensar. Se nossos semelhantes tivessem respeitado esses "direitos do corpo" não teríamos tido o massacre dos Inocentes, os cristãos no circo, a noite de São Bartolomeu, a fogueira para os hereges, os campos de extermínio, a censura, as crianças nas minas, os estupros na Bósnia.

Mas como é que, mesmo elaborando de imediato o seu repertório instintivo de noções universais, o/a besta – toda estupor e ferocidade – que coloquei em cena poderia chegar a compreender que deseja fazer certas coisas e que não deseja que lhe façam outras, e também que não deveria fazer aos outros o que não quer que façam a si mesmo? Porque, felizmente, o Éden populou-se rapidamente. A dimensão ética começa quando entra em cena o outro. Toda lei, moral ou jurídica, regula ações interpessoais, inclusive aquelas com um Outro que a impõe.

Também o Senhor atribui ao leigo virtuoso a convicção de que o outro está em nós. Não se trata, porém, de uma vaga propensão sentimental, mas de uma condição "fundadora". Assim como ensinam as mais laicas entre as ciências, é o outro, é o seu olhar, que nos define e nos forma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. Mesmo quem mata, estupra, rouba, espanca, o faz em momentos excepcionais, mas pelo resto da vida lá está a mendigar aprovação, amor, respeito, elogios a seus semelhantes. E mesmo àqueles a quem humilha ele pede o reconhecimento do medo e da submissão. Na falta desse reconhecimento, o recém-nascido abandonado na floresta não se humaniza (ou, como Tarzan, busca o outro a qualquer custo no rosto de uma macaca), e poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos tivessem decidido não nos olhar jamais ou comportar-se como se não existíssemos.

Como então houve ou há culturas que aprovam o massacre, o canibalismo, a humilhação do corpo de outrem? Simplesmente porque essas culturas restringem o conceito de "outros" à comunidade tribal (ou à etnia) e consideram os "bárbaros" como seres desumanos; e sequer os cruzados sentiam os infiéis como um próximo que devia ser tão amado assim. É que o reconhecimento do papel dos outros, a necessidade de respeitar neles aquelas exigências que para nós são inabdicáveis, é produto de um crescimento milenar. Até mesmo o mandamento cristão do amor foi enunciado e aceito (com dificuldade) apenas quando os tempos estavam maduros para tal. Mas o Senhor pergunta: essa consciência da importância do outro é suficiente para fornecer-me uma base absoluta, um fundamento imutável para um comportamento ético? Bastaria que eu respondesse que também aqueles que o Senhor define como "fundamentos absolutos" não impedem que muitos fiéis pequem sabendo que pecam, e o discurso acabaria aqui: a tentação do mal também está presente em quem tem uma noção fundamentada e revelada do bem. Mas gostaria de contar-lhe duas anedotas que muito me fizeram pensar.

Uma refere-se a um escritor – que se proclama católico, embora sui generis – do qual não cito o nome apenas porque disse o que vou contar em uma conversa particular e eu não sou nenhum sicofanta. Foi no tempo de João XXIII e meu velho amigo, celebrando entusiasticamente suas virtudes, disse (com evidente intenção paradoxal): "João XXIII deve ser ateu. Só quem não acredita em Deus pode querer tão bem a seus semelhantes!" Como todos os paradoxos, este também continha um grão de verdade: sem pensar no ateu (figura cuja psicologia me foge, porque kantianamente não vejo como se possa não acreditar em Deus, e considerar que não se pode comprovar Sua existência e acreditar firmemente na inexistência de Deus, pensando poder prová-lo), parece-me evidente que uma pessoa que nunca teve a experiência da transcendência, ou perdeu-a, pode dar um sentido à própria vida e à própria morte, pode sentir-se confortado só com o amor pelos outros, com a tentativa de garantir a alguém uma vida vivível, mesmo depois que ele mesmo já tenha desaparecido. É verdade que há quem não creia e não se preocupe em dar um sentido à própria morte, mas há também quem afirme crer e, no entanto, seja capaz de arrancar o coração de uma criança para garantir a própria vida. A força de uma ética julga-se através do comportamento dos santos, não dos insipientes cujus deus venter est.

E passo à segunda anedota. Eu era ainda um jovem católico de dezesseis anos e aconteceu de empenhar-me em um duelo verbal com um conhecido mais velho que eu e tido como "comunista", no sentido que tinha esse termo nos terríveis anos 50. E como me provocasse, coloquei-lhe a seguinte pergunta decisiva: como podia ele, um incrédulo, dar um sentido àquela coisa tão insensata que seria a própria morte? E ele respondeu-me: "Pedindo antes de morrer um funeral civil. Assim, já não estarei presente, mas terei deixado aos outros um exemplo." Creio que também o senhor pode admirar a fé profunda na continuidade da vida, o sentido absoluto do dever que animava aquela resposta. E foi este sentido que levou muitos incrédulos a morrer sob tortura para não trair os amigos, outros a infectarem-se com a peste por cuidar dos infectados. Essa é, até hoje, a única coisa que leva um filósofo a filosofar, um escritor a escrever: deixar uma mensagem na garrafa porque, de alguma maneira, aqueles que virão poderão acreditar ou achar belo aquilo em que ele acreditou ou que achou belo.

Este sentimento tão forte justificaria, realmente, uma ética tão determinada e inflexível, tão solidamente fundamentada quanto a dos que creem na moral revelada, na sobrevivência da alma, nos prêmios e nos castigos? Tentei basear os princípios de uma ética laica em um fato natural (e, como tal, também para o Senhor, resultado de um projeto divino) como a nossa corporalidade e a ideia de que só sabemos instintivamente que temos uma alma (ou algo que exerce tal função) em virtude da presença do outro. Surge daí que aquela que defini como "ética laica" é, no fundo, uma ética natural, que também não é desconhecida para os que creem. O instinto natural, levado à devida maturação e autoconsciência, não é um fundamento que dê garantias suficientes? É verdade que podemos pensar que não é estímulo suficiente para a virtude: "assim", pode dizer que não crê, "ninguém saberá do mal que secretamente estou fazendo". Mas pense bem, quem não crê considera que ninguém o observa lá do alto e sabe, portanto, que – exatamente por isso – também não há alguém que o possa perdoar. Se sabe ter feito o mal, sua solidão não conhecerá limites e sua morte será desesperada. Tentará antes, mais que o crente, a purificação da confissão pública, pedirá perdão aos outros. Isto ele o sabe no íntimo de suas fibras e, portanto, terá que perdoar antecipadamente os outros. Senão como poderíamos explicar que o remorso seja um sentimento que mesmo os incrédulos experimentam? Não gostaria que se instaurasse uma oposição seca entre quem crê em um Deus transcendente e quem não crê em nenhum princípio supraindividual. Gostaria de recordar que era dedicado justamente à ética o grande livro de Spinoza que começa com uma definição de Deus como causa de si mesmo. Salvo que esta divindade spinoziana, bem o sabemos, não é nem transcendente nem pessoal: mesmo assim, também da visão de uma grande e única substância cósmica, na qual um dia seremos reabsorvidos, pode emergir uma visão da tolerância e da benevolência, exatamente porque é no equilíbrio e na harmonia da substância única que estamos todos interessados. E o estamos porque de alguma maneira acreditamos que é impossível que essa substância não tenha sido enriquecida ou deformada por aquilo que, durante milênios, estivemos fazendo. Assim, ousarei dizer (não é uma hipótese metafísica, é apenas uma tímida concessão à esperança que jamais nos abandona) que, mesmo em tal perspectiva, poderíamos recolocar o problema de alguma vida depois da morte. Hoje o universo eletrônico nos sugere que podem existir sequências de mensagens que se transferem de um suporte físico a outro sem perder suas características inimitáveis, e parecem sobreviver como puro imaterial algoritmo no instante em que, abandonado um suporte, ainda não estão impressas em um outro. E quem sabe se a morte, assim como a implosão, não seja explosão e estampido em algum lugar entre os vórtices do universo, do software (que outros chama de "alma") que elaboramos vivendo, feito também de recordações e remorsos pessoais e, portanto, de sofrimento insanável ou sendo de paz pelo dever cumprido, e amor.

Mas o Senhor diz que, sem o exemplo e a palavra de Cristo, qualquer ética laica careceria de uma justificativa de fundo que tenha uma força de convicção ineludível. Por que retirar do laico o direito de valer-se do exemplo do Cristo que perdoa? Procure, Carlo Maria Martini, para o bem da discussão e do conforto em que acredita, aceitar, mesmo que por um só instante, a hipótese de que Deus não exista: que o homem, por um erro desajeitado do acaso, tenha surgido na Terra entregue a sua condição de mortal e, como se não bastasse, condenado a ter consciência disso e que seja, portanto, imperfeitíssimo entre os animais (e permita-me o tom leopardiano dessa hipótese). Esse homem, para encontrar coragem para esperar a morte, tornou-se forçosamente um animal religioso, aspirando construir narrativas capazes de fornecer-lhe uma explicação e um modelo, uma imagem exemplar. E entre tantas que consegue imaginar – algumas fulgurantes, outras terríveis, outras ainda pateticamente consoladoras – chegando à plenitude dos tempos, tem, num momento determinado, a força religiosa, moral e poética de conceber o modelo do Cristo, do amor universal, do perdão aos inimigos, da vida ofertada em holocausto pela salvação do outro. Se fosse um viajante proveniente de galáxias distantes e visse-me diante de uma espécie que soube propor-se tal modelo, admiraria, subjugado, tanta energia teogônica e julgaria redimida esta espécie miserável e infame, que tantos horrores cometeu, apenas pelo fato de que conseguiu desejar e acreditar que tal seja a verdade. Abandone agora também a hipótese e deixe-a para os outros: mas admita que, se Cristo fosse realmente apenas o sujeito de um conto, o fato de que esse conto tenha sido imaginado e desejado por bípedes implumes que sabem apenas que não sabem, seria tão milagroso (milagrosamente misterioso) quanto o fato de que o filho de um Deus real tenha realmente encarnado. Este mistério natural e terreno não cessaria de perturbar e adoçar o coração de que não crê.

Por isso, considero que, nos pontos fundamentais, uma ética natural – respeitada na profunda religiosidade que a anima – possa ir de encontro a princípios de uma ética baseada na fé na transcendência, a qual não pode deixar de reconhecer que os princípios naturais foram esculpidos em nosso coração com base em um programa de salvação. Se restam, como certamente hão de restar, margens não-superáveis, não ocorre diversamente no encontro entre religiões diversas. E nos conflitos de fé deverão prevalecer a caridade e a prudência.

sábado, 22 de outubro de 2022

Prece em poesia: Sol de primavera – Ronaldo Bastos e Beto Guedes


Quando entrar setembroE a boa nova andar nos camposQuero ver brotar o perdãoOnde a gente plantou juntos outra vez
Já sonhamos juntosSemeando as canções no ventoQuero ver crescer nossa vozNo que falta sonhar
Já choramos muitoMuitos se perderam no caminhoMesmo assim, não custa inventarUma nova canção que venha nos trazer
Sol de primaveraAbre as janelas do meu peitoA lição sabemos de corSó nos resta aprender
Já choramos muitoMuitos se perderam no caminhoMesmo assim, não custa inventarUma nova canção que venha trazer
Sol de primaveraAbre as janelas do meu peitoA lição sabemos de corSó nos resta aprender 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Palavra do Grande Inquisidor, por Rubem Alves

 

O Grande Inquisidor é um poema idealizado pelo personagem Ivan Karamázov e desenvolvido em forma de prosa no relato a seu irmão Aliócha, no romance de Dostoiévski Os Irmãos Karamazov (1879-1880). Trata-se de um monólogo, situado na cidade de Sevilha à época da Inquisição Espanhola, no qual o Grande Inquisidor, um velho Cardeal, depara-se com Jesus Cristo, aparecido no período, e ordena a sua prisão mesmo ciente de que se trata do Messias, questionando e condenando sua volta à Terra e à morte na fogueira.


De tudo o que Dostoiévski escreveu em Os Irmãos Karamázov o que mais me impressionou foi o incidente do Grande Inquisidor. É assim: Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o reconheciam e sentiam o seu poder, mas ninguém se atrevia a pronunciar seu nome. Não era necessário. De longe, o Grande Inquisidor o observa no meio da multidão e ordena que ele seja preso e trazido à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso, ele profere a sua acusação.

Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. Em lugar de pacificar a consciência humana, de uma vez por todas, mediante sólidos princípios, Tu lhe ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas: a liberdade. Agiste, pois, como se não amasses os homens... Em vez de Te apoderares da liberdade humana, Tu a multiplicaste, e assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda a eternidade...

O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade, mas, de posse dela, são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade dá medo. Os homens são pássaros que amam o voo, mas têm medo dos abismos. Por isso abandonam o voo e se trancam em gaiolas. 


Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que eles voariam se as portas estivessem abertas. A verdade é o oposto. Não há carcereiros. Os homens preferem as gaiolas aos voos. São eles mesmos que constroem as gaiolas em que se aprisionam...

Deus dá a nostalgia pelo voo. As religiões constroem gaiolas.

Os hereges são aqueles que odeiam as gaiolas e abrem as suas portas para que o Pássaro Encantado voe livre. Esse pecado, abrir as portas das gaiolas para que o Pássaro voe livre, não tem perdão. O seu destino é a fogueira. Palavra do Grande Inquisidor.

Rubem Alves

Correio Popular

22/05/2005


domingo, 28 de agosto de 2022

O caminho não escolhido

 

                                    O caminho não escolhido – Robert Frost


Dois caminhos se separavam em um bosque amarelo,
E, lamentando não poder seguir os dois,
E sendo apenas um viajante, muito tempo eu fiquei parado
E olhei um deles o mais distante que pude
Até que se perdia na mata;

Então eu tomei o outro, como sendo o mais merecedor,
E tendo talvez melhor direito,
Porque estava gramado e queria ser usado;
Embora os que por lá passaram
Os tenham realmente percorrido de igual forma,

E ambos ficaram essa manhã
Com folhas que passo nenhum pisou.
Oh, guardei o primeiro para outro dia!
Embora sabendo como um caminho leva para longe,
Duvidasse que algum dia voltasse novamente.

Direi isto suspirando
Em algum lugar, daqui a muito tempo:
Dois caminhos se separavam em um bosque amarelo, e eu...
Eu escolhi o menos percorrido
E isso fez toda a diferença.


segunda-feira, 18 de julho de 2022

Em dias tão densos...

A poética de Geni Guimarães:


É preciso arrumar o peito.

Preservar o jeito de ser feliz.

Difundir o amor que dá rumo à vida,

e plantar no coração do homem

felicidades sem desespero.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Assim falou Liev Nikoláievitch Tolstói: O que vai ser daquilo que faço hoje e daquilo que vou fazer amanhã.

 

Imaginemos um viajante que, enquanto cruza a estepe, se vê perseguido por um animal feroz. Para se salvar da fera, o viajante pula em um poço seco, ao fundo do qual há um dragão ávido para devorá-lo. Para evitar a morte certa, o viajante se agarra aos ramos de um arbusto silvestre que lograra crescer através das fissuras do poço. Ocorre que suas mãos começam a ceder, e o viajante sente que logo precisará se entregar para a morte, já que o animal feroz lhe barra a saída, e o dragão faminto lhe veda o abrigo ao fundo do poço.

E eis que o viajante, ao olhar para os lados, vê um rato branco (o dia) e um rato preto (a noite) perambulando junto ao arbusto – o frágil galho que sustenta o viajante vai sendo roído pelos ratos do tempo.

Ocorre que, em meio às folhas do arbusto, o viajante descobre uma gota de mel e passa a lambê-la com sofreguidão.


domingo, 1 de maio de 2022

A lógica da criação (Oswaldo Montenegro)


O mérito é todo dos santos
O erro e o pecado são meus
Mas onde está nossa vontade
Se tudo é vontade de Deus?
Apenas não sei ler direito
A lógica da criação
O que vem depois do infinito
E antes da tal explosão?
Por que que o tal ser humano
Já nasce sabendo do fim?
E a morte transforma em engano
As flores do seu jardim
Por que que Deus cria um filho
Que morre antes do pai?
E não pega em seu braço amoroso
O corpo daquele que cai
Se o sexo é tão proibido
Por que ele criou a paixão?
Se é ele que cria o destino
Eu não entendi a equação
Se Deus criou o desejo
Por que que é pecado o prazer?
Nos pôs mil palavras na boca
Mas que é proibido dizer
Porque se existe outra vida
Não mostra pra gente de vez
Por que que nos deixa no escuro
Se a luz ele mesmo que fez?
Por que me fez tão errado
Se dele vem a perfeição?
Sabendo ali quieto, calado
Que eu ia criar confusão
E a mim que sou tão descuidado
Não resta mais nada a fazer
Apenas dizer que não entendo

sexta-feira, 25 de março de 2022

Do povo buscamos a força

 

Não basta que seja pura e justa a nossa causa.
É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.

 

Dos que vieram e conosco se aliaram
muitos traziam sobras no olhar, intenções estranhas.

Para alguns deles a razão da luta era só ódio:

um ódio antigo centrado e surdo como uma lança.

 

Para alguns outros era uma bolsa
bolsa vazia (queriam enchê-la)
queriam enchê-la com coisas sujas inconfessáveis.

 

Lutar para nós é ver aquilo que o Povo quer realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino,
é uma ponte entre a descrença e a certeza do mundo novo.

 

Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam, vamos lutar.

 

Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
Ou pra ganharmos a liberdade e ter pra nós o que criamos?

 

Na mesma barca nos encontramos
Quem há-de ser o timoneiro?
Ah as tramas que eles teceram!
Ah as lutas que aí travamos!

 

Mantivemo-nos firmes:

no povo buscáramos a força e a razão.

 

Inexoravelmente, como uma onda que ninguém trava
vencemos.


O Povo tomou a direção da barca.

 

Mas a lição lá está, foi aprendida:
Não basta que seja pura e justa a nossa causa.
É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.